GRITO >> Carla Dias >>


Existimos neste lugar que tememos quebrar, porque ele pode se romper e nos lançar ao imenso vazio. Antes, as pessoas temiam o diabo, arqui-inimigo de Deus, o herói. Agora, as pessoas temem o vazio, não apenas no sentido figurado. Se o mundo se rasgar, passaremos a vida a cair. Tememos a queda livre, o chegar nunca, a possibilidade de darmos o último suspiro, quando já acostumados a um caimento sem fim. 

Tememos que a flacidez da nossa própria pele se torne a única forma de nos aproximarmos do contabilizar o tempo. Um filósofo contemporâneo proferiu que seria o mesmo que morrer duas vezes. Perguntado sobre como pode saber disso, já que nunca morreu - com direito a voltar para contar como foi -, ele sorriu, declarando que nos preocupamos mais do que deveríamos com a morte que é fim. Para ele, o interesse está na morte parcelada, impregnada nas nossas histórias, embaralhadas à nossa rotina.

Não imagine um ambiente estéril. Não vivemos em um planeta imaginado por encantados por placas de metal e macacões prateados, criado por roteiristas de filmes de ficção científica. O mundo continua mundo, com suas cachoeiras e cidades de piso cimentado, seus faróis organizados sendo continuamente desrespeitados. Há prédios antigos ladeando as modernas construções. Há desafios que são os mesmos, desde o início de nós. 

O ser humano ainda é humano, o que é a esperança, ainda que também seja a desventura do mundo.

O mundo se tornou esse lugar frágil, que tememos quebrar. Tornou-se também o reflexo da nossa incapacidade de observá-lo com a importância devida. Nós que maldizíamos qualquer coisa que contrariasse nossos desejos, demoramos uma eternidade para compreender que eles significariam nada se não pudessem encontrar eco. 

Para mim, como acessório emocional intransferível, mantenho uma canção para entoar, toda vez que sou tocada pelo desejo de que meus desejos guiem os dos outros, colocando-me na posição de poder tudo, de fazer tudo. Aliás, o movimento de autoajuda acabou por fortalecer esse pensamento do tudo que o indivíduo pode alcançar, mas sem explicar que se tratava do tudo que cabe no universo dele, porque o inteiro do mundo será sempre uma colcha de retalhos. Não respeitar cada parte dela foi o que nos trouxe a esse mundo.

A canção... e começo a cantarolar para mim mesma, enquanto aguardo minha vez na fila: se eu fosse um rei, se tivesse tudo, se tivesse você e pudesse realizar todos os seus sonhos, se eu fosse um gigante, acima de tudo, me diga o que no mundo eu cantaria, se eu tivesse tudo.

Não é apenas a canção que se tornou um mantra para aquietar minhas buscas. Olhar pela janela e observar as ruas vazias, os parques vazios, as janelas fechadas. Não pense em um mundo asséptico, descolorido, que não oferece formas para que se desfrute dele. Está tudo lá: árvores, lagos, céu. O que temos é medo de feri-lo, a ponto de ele se partir e ceder sob nossos pés. Temos medo da queda livre, de não sabermos onde terminaremos, tampouco termos ideia de quando. Passamos tanto tempo alheios à verdade de que o mundo nos sustentava, não o contrário, que o tornamos essa casca fina da qual dependemos.

Dizem que no medo as pessoas se unem. No medo, elas também enlouquecem. Às vezes, acho que enlouquecemos, ainda que o lema seja preservar o mundo para continuarmos a viver nele. Porque não há como fazer as malas e se mudar para outro planeta. 

Às vezes, acho tudo isso uma loucura protagonizada por nós. Talvez porque eu sinta falta dos sons dos carros, da música dos grandes shows de festivais de rua. Falta das conversas calorosas, sobre temas intrincados, e das gargalhadas que pareciam não ter fim. Falta das longas conversas, dos sons abafados orquestrados pelos amantes.

Neste mundo frágil, o silêncio é imprescindível. Ele nunca esteve tão saudável, que lhe digam os mares livres daquele lixo todo que descartamos no corpo dele. Saudável, mas frágil, pode trincar todo em um sopro. Frágil de nos confinar na sua beleza, sem que possamos erguer a voz para proclamar nossa admiração pela sua geografia e sua capacidade de sobreviver a nós.

O silêncio é nosso rei, é ele quem manda. A apatia é necessária, o ritmo da vida desandou por conta disso. Tudo me parece tão mais lento. Às vezes, choro com a cara enfiada no travesseiro, mas tenho de engolir o som do meu desalento. Sinto saudade do grito, do poder que ele tem de desopilar o fígado. 

Tornamo-nos criaturas apáticas, desinteressadas uns pelos outros. O mundo está frágil, mas não estéril. Ainda cria vida em cada espaço. O ser humano está estéril de existência. Arrasta-se pelo mundo, calado pelo resultado de ter sentido e agido como se tivesse tudo. Agora, não tem mais sobre o que cantar, porque não há vida nele suficiente para se conectar com a vida que o mundo cria.

Grito.


Imagem: Passing Storm over the Sierra Nevadas © Albert Bierstadt 

carladias.com

Comentários

branco disse…
ahhh dona Carla ! virou rotina eu vir aqui e fazer comentário em cima de comentário sobre o quanto sua sensibilidade ajuda, através do seu texto, ajuda a aflorar a nossa (sensibilidade). já disse aqui na página que não acredito em perfeição mas, mais uma vez, os seus dedos a tocaram durante o tempo em que escrevia.
Rosangela disse…
Simplesmente maravilhoso Carla.
Carla Dias disse…
Branco... sou a pessoa que sempre se pega sem palavras suficientes para agradecer as delicadezas das outras pessoas. Acabo no mesmo, que pode ser o mesmo, mas não é menos valoroso: obrigada!

Tia Rosangela... obrigada. :)
Zoraya Cesar disse…
Grite, Carla, por favor. Porque nós precisamos do silêncio das suas linhas e beleza de seus gritos escritos. Vc nos traduz. Vc nos embeleza. Vc é maravilhosa.
Carla Dias disse…
Zoraya, que ecoem todos os gritos que provocam as mudanças necessárias. Até aqueles miúdos, porém sonoros.Nossos gritos.
Albir disse…
Carla, que no medo nos unamos pelo menos na loucura. Pode ser o que resta.
Carla Dias disse…
Então, vamos lá, Albir.

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