OLHOS PERDIDOS >> Sergio Geia
Encontrei aqueles olhos perdidos assim, do
nada, raio cortando o céu, virei e pronto: estavam lá. Encontro doce, eu não desviava;
nem ela. Parecia brincadeira de estátua, congelamos nossos olhares. Eu fiquei
pensando no que ela estaria pensando. Ela, talvez, pensasse o mesmo, no que
aquele sujeito de cabelos brancos estaria pensando; ou fazendo. Nesse mundo
veloz, parar e olhar, apenas olhar, é perda de tempo. E, de repente, dois
olhares se param, se encontram, se cruzam. Será que me viu velho?
Havia garoa; fina. Havia sons:
passarinhos, latidas, carros, uma conversa longe, voz de criança. As pessoas na
calçada caminhavam, seguindo seus rumos, suas vidas, alheias àquele encontro, àquele
cruzamento de olhares.
Não. Deixe-me corrigir qualquer
pensamento enviesado seu, assim ele não cresce, não ganha estatura, e você, não
pensa mal de mim. Sim, porque as pessoas pensam mal, o tempo todo. O mundo
pensa mal, e nem sei se é mal, no caso, mas há sempre uma tendência de se catar
a verdadeira intenção escondida, como se houvesse algo escondido. Alimentam o
desejo de que o outro deseje, de que a outra deseje. Não são desejos. Apenas um
encontro: eu, olhando a chuva, a mangueira balançando de vento, ela, olhando o
monstrengo de concreto que a olha de cima, e tcham, olhares se cruzam. Apenas
isso.
São telhados, varandas, quintais,
garagens. Vez em quando o homem chega de moto, a moça entra num rancho,
crianças brincam, jogam futebol, mas olhos perdidos, docemente perdidos, que se
acham em mim (é o que parece), me consumindo, derretidos, alheios, como se não
estivessem aqui, mas longe, Paris, Nova York, Tóquio, alheios a tudo, presos em
mim, alheamento feitiço, não, eu nunca vi. Me enfeiticem, olhos perdidos.
Também viajo na sua, como numa história do Hatoun.
Quatorze anos? Quinze? Por aí. Quatorze,
quinze, alguns anos, talvez vinte e seis, trinta e oito, não sei, não lembro. Aliás,
mais esqueço que lembro, ultimamente; troco nomes. Historinhas infantis, dos
três porquinhos, conhece?, da casa de sapê, de pau a pique, de tijolos, do
Bolinha, Bolota e Bolão. João Cláudio, ou Maria Alice tinham o disquinho. Nunca
esqueci; não esqueço o sopro do Lobo Mau fazendo voar casinhas. Mas também não
sei por que falo isso; talvez, a ideia me vem agora, porque o seu olhar perdido
me evoca o ingênuo, o frescor, a leveza de outros tempos. Careço de oxigenação,
preciso oxigenar a vida, necessito do seu olhar.
No seu tempo, eu estava lá, ouvindo os
três porquinhos. Uma ingenuidade incrédula. Talvez você também possa estar,
não? Vinil pequeno, árvore ao fundo (Lobo Mau à espreita), Bolinha e Bolota
brincando, Bolão assentando tijolos. Tem uma vitrola aí? Talvez você ache no You Tube. Você nem quer saber, não é?
História bobinha.
Você agora o desvia, olha para baixo,
de lado, enxerga alguma coisa. Surge um cachorro (você tem um vira-lata), uma
mulher (mãe?). Ela recolhe roupas do varal, conversa, você responde. Depois ela
entra carregada de roupas, o cachorro dá umas voltinhas, vai para lá e para cá,
você passa a mão nele, faz um carinho, ele entra balançando as orelhas, parece
não gostar do aconchego, e então, você torna o olhar em mim.
Parece fazer perguntas, sim, é nítida
a expressão interrogativa. Num canto de seus olhos, bem escondido, vejo, parece
haver um pedaço de pena, uma piedade de mim. Ó, anjo meu, não careço de sua
piedade. Sim, sou um homem sozinho, em termos. Mas a solidão, aprenda isso,
pode ser uma ótima companheira. Um homem só nunca está sozinho, pois há a
solidão, e a solidão, às vezes, é mais quente que qualquer companhia de carne e
osso. Se é bom? Depende. Se você se entender com ela pode ser ótimo.
Ok, ok, satisfaço sua curiosidade,
gracinha: é que vez em quando gosto de ficar assim, olhando, olhando. Como não
fumo — e fumar deve ter seu lado divertido porque você acende um cigarro e fica
em qualquer lugar, numa sacada, na calçada, na frente do bar, olhando, apenas
olhando —, pego meu uísque e paro, bebo, olho, às vezes surgem coisas, do nada,
de repente, um olhar.
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