O BEIJO VERMELHO ou O HOMEM E SUA CUECA >> Zoraya Cesar
Os mais conservadores podem ficar chocados. A cena, porém, é bem mais comum do que aceita nossa vã imaginação.
Comecemos pelo quarto, decorado feito uma tenda oriental no melhor estilo produção hollywoodiana do século passado: almofadas e tapetes multicoloridos espalhados pelo chão, uma cadeira otomana estilizada à moda antiga, um dossel sobre uma larga cama, bandejas com frutas e mel, enormes ventarolas de plumas... só faltavam os eunucos besuntados de óleo e as câmeras de filmagem, pois a odalisca, a odalisca estava lá.
Se o décor era hollywoodiano, a atriz principal em nada lembrava as esqueléticas protagonistas contratadas pelos estúdios. Alta, o corpo cheio de carnes e curvas na medida certa, seios protuberantes. A pele muito branca, quase leitosa, contrastava escandalosamente com os olhos verde-perdição, com o batom vermelho-pecado e com os longos cabelos negros, mais negros que a asa da graúna – um momento. Ninguém aqui já viu uma graúna sequer, a não ser a do Henfil. Vamos de novo: ela tinha os cabelos mais negros que carvão, assim como o esmalte das unhas, compridas e bem feitas. Vestia-se tal qual Jeannie é um gênio, com exceção de um pequeno detalhe, quase mínimo, não tivesse – esse detalhe – 15cm de comprimento: um chicote. Um chicote que a odalisca brandia, de tempos em tempos, acima do homem nu a seus pés.
Hein? Que homem nu? Ah, sim, desculpem, esqueci de terminar o cenário. Rastejando ao chão, um homem nu abjetamente implorava para beijar os pés da odalisca, ser pisado, chibatado, maltratado, pois ele era um menino mau, muito mau.
Tudo mais falso que a decoração. Pura encenação. O homem em questão desmaiava ao ver sangue e não suportava dor. Ele queria mesmo era sentir medo, a sensação de que ela, se quisesse, poderia machucá-lo, feri-lo, vergastá-lo – poderia; mas não o faria. E, por algum motivo que foge à compreensão das almas mais cândidas, ele gostava de implorar para beijar os pés daquela mulher. Era o fetiche dele, fazer o quê?
As íris verde-perdição da odalisca olhavam-no com um misto de tédio e desdém. Estava acostumada àqueles tipos, era seu trabalho. Sua parte resumia-se a representar o papel de uma dominatrix das mil e uma noites, tal qual o imaginário popular exigia. Se o cliente queria algo, digamos, mais vívido, bem... para cada coisa, seu preço. Menos para o sexo. O programa incluía, tão somente, o uso convincente de apetrechos e pantomimas de dominação.
Armado o cenário e explicado o argumento, continuemos o roteiro. Usualmente, ao acabar a sessão, os clientes se vestem, deixam o dinheiro e vão embora. Às vezes, no entanto, a odalisca os surpreende, vestindo-os, ela mesma, para, ao final, dar-lhes um tapa na cara. Um brinde de despedida, digamos, um mimo. (Alguns de seus clientes morreriam, matariam, pagariam fortunas por esse momento. Mas ela só o fazia quando lhe dava na telha. Como agora).
A primeira peça que ela pegou foi a cueca. Elogiou-lhe a brancura e a limpeza imaculadas.
- É minha mulher quem lava.
A odalisca levantou uma das sobrancelhas, sem tecer comentário. Todos temos nossas idiossincrasias. Não vivia ela, exatamente, das idiossincrasias alheias? Continuou o jogo. Tendo o cuidado de não deixar marcas de seu batom vermelho-pecado, sussurrou-lhe ao ouvido: eu também posso lavá-las pra você.
Ele ri, um tanto altaneiro, sem entender o jogo.
- Não, querida. Você é minha gostosa, não minha mulher. É privilégio da minha mulher lavar minhas cuecas e, antes dela, minha mãe. Eu nunca na minha vida lavei minhas cuecas.
Ela engole o "querida" e o "minha gostosa" com saliva, levanta ambas as sobrancelhas e, sem falar nada, circunda-o até postar-se atrás dele. Passa suavemente as unhas em suas costas, arrepiando-o de prazer e medo - e se aquela tigresa deixasse arranhões que ele não teria como explicar à esposa? A odalisca, no entanto, agacha-se e, lentamente, veste e sobe a cueca pelas pernas do homem que nunca lavara suas próprias peças íntimas. Murmurava e ciciava palavras doces e sensuais, deixando o sujeito inteiramente tonto, desapercebido do que acontecia às suas costas.
O batom vermelho-despudorado deixa sua marca na cueca, não mais imaculadamente branca, do homem que nunca lavara suas próprias cuecas. |
Ao terminar, os olhos verde-sedução dela apreciam divertidamente o resultado de sua obra: um grande e despudorado beijo vermelho-escândalo a marcar, para sempre, uma cueca que jamais voltará a ser branca, jamais voltará a ser lavada, um beijo que jamais terá explicação.
Sorriu, satisfeita consigo mesma. A marca indelével na cueca seria o tapa na cara, o brinde, o mimo de despedida. E, condescendente com o sujeito, terminou de vesti-lo, alegremente.
Despediram-se. Até a próxima, disse ele. Até nunca mais, sabia ela.
Fechada a porta, ela se despe da ridícula fantasia e recosta, preguiçosa, na cadeira otomana. Acende um cigarro, espreguiça-se tal qual um gato ao sol. Um homem que não lava as próprias cuecas, vê se pode isso!
E, langorosamente, retoca o batom vermelho-lição.
Foto: 4304553 in Pixabay
Comentários
Hoje, se bobear, a titular, principalmente se o homem for interessante, por algum motivo, para ela, pode ainda chamar a amante para fazer um "menáge à trois"! Hahaha...
Sugestão de desculpa para o cueca-limpa: "Querida, você não imagina o que me aconteceu hoje! Comi uma sobremesa quente e, dez minutos depois, bateu aquela diagonal. Não tive tempo de chegar ao banheiro mais próximo, e acabei dando perda total na cueca e na calça!"
Ah, sim: ele deve se apresentar em casa com roupas novas, compradas após a saída da tenda da odalisca.