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Acreditava que morreria cedo.

Mãe, pai, tia e tios e outros tantos parentes e chegados da família viviam a brigar com ela, toda vez em que a menina, franzina de experiências, verbalizava, escolada de certeza, que ela morreria cedo.

Sabendo do tempo o limite, desde que aprendeu como, começou a escrever cartas para quando os irmãos fossem adultos e nascessem os sobrinhos. Também escreveu cartas aos pais, a maioria tentando convencê-los de que já podiam deixar o luto desanuviar e voltarem a sorrir, assim, com alegria presente.

O que mais a incomodava eram as relíquias. Não sabia a quem deixar sua coleção de pedras em formato de coração. No dia em que a professora mostrou a ela a imagem de um coração verdadeiro, o músculo, a menina abriu o maior berreiro. Onde já se viu mudar uma certeza dessa forma? Desde sempre, coração era o do pingente de seu colar, dos livros que ela adorava, dos desenhos que enfeitavam os bilhetes que sua mãe escrevia para ela ler, enquanto tomava café da manhã.

A professora explicou direitinho, e até convenceu a menina de que tudo bem ela adorar o coração que conhecia, que nele tinha uma tal de poesia vivendo. Porém, veja bem, menina, que esse músculo é de beleza ímpar. Quem já o observou batendo compassado, sabe bem de que se trata da vida na intimidade de sua coreografia.

Ela manteve a coleção de pedras em formato de coração-poesia. Nasceu com ela a certeza infame de que logo morreria, quando seu coração-músculo decidisse que tempo era coisa que ela não teria mesmo se desejasse muito; que pedisse ajuda extra ao seu anjo da guarda.

Cada minuto de sua vida de menina foi preenchido com um algo a fazer, um desejo incontrolável de conhecer, de aprender, de escutar e responder na lata mesmo. Sua língua sempre foi destravada, e na conta dela, levou puxão de cabelo e soco no nariz.

Padres tentaram convencê-la do pecado horrendo que era esse negócio de prever, ainda mais a morte. Ainda, ainda, muito ainda mais a própria morte. A psicóloga se dedicou à missão de para fazê-la compreender que era uma bobagem esse pensamento. Fez a menina responder umas perguntas que ela nem entendia direito do que se tratavam. No final, nem os servos de Deus ou da ciência a convenceram do contrário.

Há alguns anos, substituiu as folhas de caderno escritas coloridamente pelo documento com assinatura reconhecida em cartório. Não quer estar desprevenida, quando a coisa de fato acontecer. Os pais aceitaram que ela jamais abandonará essa certeza ferina. Hoje, eles ajudam a colocar em ordem papéis e alterar beneficiados do testamento da filha.

Anda pela casa a passos lentos e silenciosos. Ninguém percebe que ela está no recinto. Os pais se acostumaram com a ausência dela, mesmo quando ela está ali, na mesma sala que eles. Às vezes, falam sobre a filha como se ela não existisse mais. Os parentes ignoram a existência dela, o que cria confusão na disposição das mesas das festas de casamento e batizado. Ela acaba sempre na barra da saia da sobra. Aquele lugar desapropriado feito ela.

Trabalha quase doze horas por dia em uma loja de conveniências. Tudo que aprendeu sendo a menina que duraria pouco, calou-se diante do tempo esticado. Treinou a vida toda de menina para que a vida acabasse ali mesmo: na meninice. Nunca treinou para ser adulta e isso a deixa confusa e a mantém isolada.

Transferiu a guarda das suas pedras em formato de coração-poesia para vários homens que alimentaram seu desejo, mas sem saberem. Foram várias alterações no cartório, horas despendidas em amor platônico. Lágrimas derramadas com soluço engolido.

Sua certeza definhada, alinhavada pelas experiências forjadas na experiência dela ter duração que ultrapassou a sua previsão de existência. Pensa no seu coração-músculo, miúdo diante da vida. Tão quieto, sentenciado a uma cadência morna. Não há tempo para reaprender o destino, fazer uma releitura apurada de sua importância de prazo vencido.

Passa horas a tricotar agasalhos que seus irmãos jamais usarão. Come para o corpo responder aos movimentos. Sente-se confortável na invisibilidade que lhe cabe, como pássaros que vivem em gaiolas, sem que lhe percebam a presença ou escutem seu canto. Nada mais lhe assanha o espírito.

Não consegue compreender como pôde ter ido além, tornando-se adulta. A menina acreditava que morreria cedo, mas então que esse cedo se tornou tão longo, que ela não sabe o que fazer com o tempo.

E ao tentar preenchê-lo, esvazia-se.

Comentários

Analu Faria disse…
Caraca, Carla! Gostei muito. Imaginei um filme do Wes Anderson com todas essas imagens que fui construindo enquanto lia.
Se eu puder dar uma sugestão: talvez fique mais "intensa' a sensação de que a moça não sabe o que fazer com o tempo que não previu, se esse sentimento não for explicado. Em partes como: "Nunca treinou para a vida adulta e isso a deixa confusa e isolada." acho que o leitor já entenderia a mensagem (e ficaria remoendo e preenchendo lacunas - o que eu acho ótimo) se a frase terminasse em "adulta."
O que acha?
Carla Dias disse…
Analu, só de imaginar o texto com cenas já me deixou feliz. Filme do Wes Anderson... 

Eu entendo o que você diz. Aliás, obrigada pela sugestão.

A ideia de complementar o pensamento vem do fato de que eu queria mesmo que as pessoas entendessem que a personagem está confusa e isolada. Não queria dúvidas aí. Não queria que a vissem como uma eterna menina que não soube crescer e tudo certo. A confusão e a isolação abonam a inquietação dela. Por esse motivo eu mantive a explicação.

Beijos!
Unknown disse…
Excelente, adorei. Parabéns!
Analu Faria disse…
Entendi, Carla. Não acho que desabone a narrativa em nada. Ficou ótima, adorei!
Albir disse…
Carla, sua menina não está sozinha em acreditar que é previsão, o que na verdade é desejo, esperança. Não encontrou, desde cedo, aqui por estas plagas, nada que valesse a pena.
Carla Dias disse…
Sonar, obrigada!

Analu, obrigada. :)

Albir, exatamente isso. A questão é que ela nunca encontrou. Não decidiu não encontrar... simplesmente não encontrou e criou uma história para isso.

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