INCRÉDULO >> Carla Dias >>


Em pleno momento caótico, tudo virado ao avesso, uma eterna ressaca de maledicências, eles chegam e tomam o recinto. Como podem se manter indiferentes às ocorrências baseadas no fatídico?

É difícil de engoli-los, eles e suas reverberantes frases feitas, uma mistura de literatura dispensável, música alienável, cinema descartável, comida de micro-ondas, bebida direto de embalagem longa vida.

Quando dão de recitar sentimentos, em monólogos encenados à luz de velas, é como se cravassem um punhal no peito da realidade. Como podem desfilar por aí desse jeito, menosprezando a fatalidade, a miséria que assola o mundo?

Anda tudo tão feio, de feiura que nem campanha de marketing consegue disfarçar. Anda tudo tão peso, dor, desespero, violência. A alma da gente se encharca de tragédias e impotência. Tudo tão berro, soco no estômago, solidão.

E eles caminham por aí, distraídos em ruas abarrotadas de injustiças, preocupados com pormenores, alienados por um egocentrismo amplificado. Curvam-se a um deslumbramento que os hipnotiza, e escolhem se perder nele, assim, em momento de crise, de desespero coletivo, de falta de fé em futuro, políticos, líderes e em si.

Tudo tão soluço, desespero, tédio. Há essa sensação de vandalismo existencial, sabe? Parece que seremos todos rasgados, feito papel sulfite, durante o comercial de margarina. Tudo em nome do superlativo, que estamos em momento em que somente o exagero tem seu espaço.

Enquanto isso, lá vão eles...

Mãos dadas, silêncio aprazível em meio ao caos. Troca de olhares pueris prefaciando luxúria de primeira grandeza. Por certo, rondam um o desejo do outro, e acabarão se enroscando em algum cômodo por aí. Promessas fazem parte do repertório, e eles sabem que elas são frágeis. Ainda assim, eles as usam como se fossem confetes atirados ao ar, em dia de Carnaval.

Como eles podem, em momento de fragilidade constante, mergulhar em amor? A época é de guerra, de corte, de miséria estandarte, de maledicência fazendo a vez de protagonista de manchetes. Momento do “eu e eles”, dos corações partidos, dos homicidas de futuro, dos falsos profetas, dos cortes na verba e do verbo defendendo o indivíduo, em um belo “dane-se” ao coletivo.

Como podem, em tempo de intolerância e separatismo, juntar-se aos pares, caminharem aos sorrisos, misturarem-se a outros, mais tarde, para bendizer o amor, que eles sabem, adora passear em labirintos e visitar tempestades?

Daqui, de onde os observo, da minha solidão de consciente das intempéries, eu posso garantir que os amantes não sabem o que fazem.

Imagem: Lovers in the Lilacs © Marc Chagall

Comentários

Zoraya disse…
Carla Dias, Carla Dias, ainda vou cumprir minha promessa de fazer um inventário com suas frases lindas! Beijos admiradores
Albir disse…
Foi inevitável completar a paráfrase bíblica: "...os amantes não sabem o que fazem", por isso devem ser perdoados.
Carla Dias disse…

Zoraya, só você para pensar algo do tipo. Beijos.

Albir, principalmente quando o maior pecado deles é não desistir do gostar, ainda que tudo conspire contra o afeto. Beijos.

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