AI, MEU CORAÇÃO! - IV >> Albir José Inácio da Silva
Continuação de 23/01/17:
(Bem recebido na delegacia, Bóssi
repetiu a história do assassinato em depoimento formal. Saiu satisfeito com o próprio
desempenho e com o desenrolar dos acontecimentos dentro do previsto. Nem sombra
ainda de preocupação).
Bóssi voltou para o clube, o que
não lhe faltava era trabalho até as eleições. E por onde andaria Neném, que não
deu notícias até agora? Não estava no clube nem telefonou.
Para Bóssi, Neném era sim de
confiança, no sentido de não o trair, mas isso não significava ausência de
problemas. Era preciso mantê-lo por perto, sob vigilância. Bóssi tentava se
tranquilizar - não havia mais o que dar errado. Mas cadê o Neném?
NENÉM
O apelido de Neném quase dá conta
de sua definição, se considerarmos os seus quase trinta anos. Não porque pareça
um bebê doce e sorridente, mas por suas atitudes a um tempo cruéis e infantis.
Sua mãe sempre o chamou assim,
enquanto lhe passava a mão na cabeça a cada novo delito na rua, na escola e na
igreja. Ele batia nos colegas menores e fazia escândalo se tinha de enfrentar
os da sua idade.
Certa vez, ficou internado em
convulsões porque levou um soco no nariz depois de agredir um garoto com metade
do seu tamanho. Neném desmaiou ao ver o sangue escorrendo do nariz, teve
convulsões e só se acalmou depois de sedado no hospital.
A caderneta de vacinação de Neném
deu trabalho para ser preenchida. Eram precisos quatro enfermeiros para
segurá-lo, em meio a gritos, pontapés e dentadas.
Roubava, mentia, intrigava e se
escondia sob as saias da mãe. Não estudava, não fazia os trabalhos, mas as
professoras o iam passando de ano, ameaçadas pela mãe e na expectativa de que
saísse da escola ou pelo menos da sua turma.
Quando não estava paparicando o
filho, a pobre mulher estava na igreja. Padre Antônio não tinha muita paciência
com aquela beata maledicente e barraqueira, mas a contribuição era generosa e
ela não fugia das tarefas na paróquia.
Foi por isso que, quando a mãe viu
ameaçado o seu rebento por incomodados de todas as idades que quiseram dar-lhe
um corretivo, o padre teve de recebê-lo na sacristia e conter os ânimos dos justiceiros.
Não durou quinze dias a paciência
do padre. Neném roubou o dinheiro das ofertas, vendeu peças sagradas e seduziu
fiéis de todos os sexos. A mãe disse que o padre era mais um a perseguir seu
filho. E assim Neném atravessou a adolescência.
Mas não pensem que a falta de fé
inspirava esses desatinos. O fervor religioso parece ter sido a única coisa que
a mãe conseguiu incutir-lhe na cabeça. Muitas vezes, depois de uma noitada de vandalismo
e drogas, Neném sentava-se ao lado da mãe na igreja, mexendo os lábios em
contritas orações, sob o olhar furibundo do padre.
E insistia em se confessar, para
desespero do Padre Antônio, que ouvia as barbaridades. Crimes perpetrados pelo
pequeno Lúcifer, como costumava pensar, sem poder fazer nada por causa do
sigilo da confissão. Inocentes foram acusados por atos de seu confidente e ele
não aguentou mais. Chamou a mãe e disse a ambos que não o aceitava mais em
confissão e nem sua presença na igreja.
A desfeita do Padre, entretanto,
não abalou a fé de Neném. Ele e sua mãe passaram a frequentar outra paróquia em
que foram bem recebidos porque generosa a mãe e desconhecido o filho. A
promessa de Padre Antônio, como exigiu a genitora, era não “envenenar” a cabeça
do outro sacerdote contra o seu bebê.
E foi assim que Bóssi encontrou
Neném há vinte anos atrás, desprezado e ameaçado por toda Tarietá, sem estudo,
sem trabalho, sem perspectivas. Mas Bóssi sempre tinha perspectivas para todos.
(Continua em 15 dias)
Comentários