MINHA VIDA COM AMELINHA - PARTE II - Zoraya Cesar


Amelinha fazia o diabo com minha vida. Resolvi mandá-la para casa, o Inferno, que era seu lugar. Embora eu não acredite nessas coisas.

Talvez Amelinha sobrevivesse ao próprio desleixo por muitos anos ainda. Eu é que não aguentaria. Por isso resolvi comprar-lhe uma passagem de ida sem volta dessa vida para outra melhor (se você acredita nisso. Eu, não), inoculando ricina em seus cigarros.

Acho que fui muito corajoso. Afinal, a polícia poderia juntar H2 com O e meus planos irem por água abaixo. Ser preso por assassinato não era meu objetivo. Ver-me livre daquele estrupício, sim. Era isso ou enlouquecer. Acabaria fazendo alguma besteira. Como atirá-la pela janela. Quebrar-lhe a cabeça. Algo assim. (Não foi falta de vontade. Mas sou homem controlado).

Tudo deu certo, no entanto. Não herdei grandes fortunas, apenas uma módica pensão. Meu comportamento após o enterro foi absolutamente low profile. Amelinha não se cuidava e tinha saúde comprometida. Acho que isso tudo contribuiu para afastar suspeitas constrangedoras. Fui deixado em paz. 

Paz. 

Faria qualquer coisa – como realmente fiz – para ficar em paz. (Em paz e com o suficiente para me sustentar e ao meu laboratório. Não sou homem gastador).

Amelinha me perturbava dia e noite, fazendo escândalos, interrompendo meus trabalhos, exigindo sexo, me humilhando e me fazendo de capacho. Só porque sou pobre e tímido. Ela dizia que, por me sustentar, minha vida lhe pertenceria por toda eternidade. Não acredito nessas coisas. Por isso matei-a sem maiores constrangimentos. Nem menores, pra dizer a verdade.

Por mim, Amelinha nunca descansaria em paz, e seu mentor, o Diabo, a atormentaria até o fim dos tempos. Uma pena, mesmo, que essas coisas não existam. 

Reorganizei minha vida. Demiti o molecote que me foi impingido e recontratei D. Lea para me ajudar – online, apenas - nas pesquisas. Queria ficar sozinho. Que me esquecessem! Ficaria entocado em meu laboratório até terminar minha tese – na qual trabalhava exaustivamente. Só então ressurgiria, vitorioso, aclamado, no mundo acadêmico. 

Foram quarenta dias de felicidade até eu começar a sentir como se Amelinha estivesse presente; como se ela fosse irromper a qualquer momento no meu laboratório; como se ouvisse sua voz gritando em meu ouvido. Minhas mãos estavam constantemente trêmulas e eu não conseguia raciocinar. Tinha taquicardia e sobressaltos inexplicáveis. Ao deitar, sentia seu bafo de cachorro morto e poderia jurar que, uma noite, ouvi a cama gemer sob o peso de seu corpo obeso. Poderia jurar, mas não juro, pois não acredito nessas coisas.

Concluí que estava traumatizado. Resolvi tomar calmantes. Funcionou. Por alguns dias.

Pois quem não ficaria nervoso ao encontrar o maço de cigarros que matou sua esposa - um deles, aceso - sobre a mesa?

(O mesmo mata-rato fumado por Amelinha, aquela amante do Demo). 

Eu não fumo. Não tenho cigarros em casa. Não recebo visitas. 

Para piorar, um cheiro nauseabundo, uma mistura de arroto e café velho empesteava a casa, e nem meu asséptico laboratório escapou. O odor me lembrava do gosto da boca de Amelinha, que eu era obrigado a beijar naquelas noites horrendas de sexo.

Tudo na vida tem explicação. E eu pretendia solucionar aquele mistério ensandecedor, que se repetia a cada manhã, em diferentes pontos da casa. Os calmantes não estavam mais surtindo efeito, eu continuava inquieto e doentio. Inútil, portanto, como pesquisador. Minha paz tinha se esvanecido como fumaça ao vento.

Depois de alguns dias nessas condições insanas, injetei-me estimulantes, deixei todas as luzes acesas e passei a noite insone, percorrendo a casa, a ver se flagrava o momento em que o maço e os cigarros apareceriam. 

Amanheceu sem que nada acontecesse. Concluí que Amelinha dera a chave da casa para que alguém a invadisse durante a noite e lá deixasse o maldito cigarro e aspergisse a nefasta substância mal-cheirosa. Parte de seu plano macabro de jamais me deixar em paz. Naturalmente, a tal pessoa viu as luzes acesas e desistiu de entrar. Tudo tem uma explicação lógica. 

Aliviado, fui tomar banho, para relaxar e voltar ao laboratório. Tinha muito tempo a resgatar, meus estudos estavam por demais atrasados. 

Quando voltei à sala, lá estava o cigarro aceso, a fumaça subindo, o odor pestilento mais forte que nunca.

Surtei. Sim, confesso que surtei. Gritei, quebrei coisas, bati a cabeça na parede, me arranhei todo com as unhas. O que queriam que fizesse? Sou um pobre químico, ordeiro e metódico. Ver minha vida de pernas para o ar novamente, depois de anos preso num inferno, foi demais para mim. Para qualquer um, aposto. 

Aquela desgraçada não me deixava em paz quando em vida, por que o faria em morta? Mas eu faria qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, para não sentir sua presença maligna, nem seu cheiro pútrido - que impregnava até as minhas roupas, meus cabelos, tudo -, para ter minha paz de volta.

E só via uma maneira de me ver livre de Amelinha para sempre. 

Peguei a cartela de cigarros, fumei-os, um por um. 
Mataria Amelinha de novo, no inferno, se preciso fosse. 
Faria qualquer coisa para ficar em paz. Para sempre.
Não tinha dúvidas que estavam repletos de ricina. Mas, para garantir, injetei um pouco mais. Quando descobrirem meu corpo, já estarei em paz.

No vazio para onde vamos depois da morte, espero encontrar sossego. Se encontrar Amelinha, mato-a de novo. Farei qualquer coisa, nessa e na outra vida para me livrar dela. Se é que existe isso.  













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Comentários

Cri-crítico disse…
Uau... estou de queixo caído! Nossa cronista entrou no trilho agora, sem firulas, criativa, sagaz. E de brinde, parece que aposentou sua personagem investigadora prosaicamente infalível, pelo menos nessa trama. No mínimo, embainhou momentaneamente sua lâmina cortante, ou a está afiando para a próxima investida. Minha amiga Ágata ficou triste - pois ela gosta de exercícios mentais sofisticados, pois é especialista em puzzles -, mas o Poe, meu sombrio parceiro de noitadas, gostou, e disse fleumaticamente que menos é mais, recomendando que a autora continue neste caminho estilístico. De minha parte, vislumbro o início de uma nova fase literária, mais liberta e condizente com o profundo conhecimento que a autora possui acerca da - muitas vezes - incompreensível índole humana. Mas resta a dúvida: até que ponto da mente obscura de suas personagens Mme. Zoraya é capaz de mergulhar para satisfazer a voracidade (muitas vezes mórbida) de seus fiéis leitores? Ao contrário da Amelinha e de seu ex-marido-vítima-carrasco-vítimadenovo, apenas quem viver, verá!
Amei! Surpreendente! Podia ter uma continuação lá no Além, A vingança de Amelinha!

É sempre uma superação de expectativas!

beijos enormes!
Clarisse Pacheco disse…
Animou minha sexta-feira!!! Adorei o final, na medida!
Marcio disse…
Zoraya, parabéns pela capacidade de surpreender seus leitores!
Eu acho que o narrador, em verdade, acabou se arrependendo de matar a Amelinha, e entrou em uma crise de abstinência.
A grama é sempre mais verde do outro lado da cerca. Então, ele resolveu se reencontrar com o grande amor de sua vida (ou de sua morte), para nunca mais sentir falta do amor pelo ódio que nutria por ela.
Anônimo disse…
Vixe, Ana Luzia... de Mulher nova, bonita e carinhosa (recatada e do lar também?) para A vingança de Amelinha, foi um salto quântico, não é mesmo? A música que não cabe aqui (da Amelinha cantora) é Foi Deus que fez você (para a Amelinha personagem). Pelo visto, foi cria mesmo do cramulhão. Cruz-credo!
Anônimo disse…
Oi, Clarisse, tá animada? Então me diz onde vai ser seu happy hour hoje, amiga. Passo lá para te dar um abraço, na medida!
Anônimo disse…
Elementar, meu caro Marcio, elementar! Muito perspicazes suas observações. Depois do seu apoteótico "para nunca mais sentir falta do amor pelo ódio que nutria por ela", Titia Zoraya que se cuide!
Anônimo disse…
Cri-crítico, acho que não é só seu queixo que está caído, não! Pelo menos escolheu bem seu apelido. Vai ser cri-cri assim lá do lado da Amelinha, seja onde ela estiver. Larga do pé da Zoraya ou vou botar seu nome na lista do Marcelo Odebrecht. Xiii... desculpa... peguei pesado, né!?
Anônimo disse…
Basta! Cansei de provar que não sou um robô!
Anônimo disse…
Bem q dona Léa podia ser espírita e contar como estão esses dois no além!
Anônimo disse…
Zozo, a caminho do lerelere, eu li, eu li... E acho que esse químico tinha mesmo algum tipo de química com a Amelinha... Tem gente que adora viver no inferno e faz de tudo para se manter nele... Deve ser um tipo de prazer mórbido... Literalmente rs
Albir disse…
Muito bom, Zoraya! Me lembrou um júri que assisti uma vez, em que o réu, perguntado, pediu desculpas ao advogado para dizer que, se a vítima estivesse viva, ele a mataria quantas vezes fosse necessário.

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