JAVELIN - LANÇAMENTO DE DARDOS >> Zoraya Cesar
O menino se apaixonou pelo filme desde o primeiro quadro. Jamais esqueceu a cena do grande guerreiro massai arremessando uma lança no ar, a lança traçando um arco elegante e mortal, atingindo, com um thud seco e definitivo, o enorme javali que havia dizimado sua família. E sempre levou no coração a cena final, o guerreiro voltando para casa a correr, compassado, majestoso, quilômetros a fio, sem se cansar, livre.
De tal maneira ficou impressionado o menino que, imediatamente, introjetou o grande guerreiro e sua história.
Os anos passaram, como costumam passar, queiramos ou não, com sua bagagem de dores e perdas (quando temos sorte, também de amores, mas essa, aviso logo, não é exatamente uma história de amor). Passou para o menino também, agora já rapaz, integrante de uma equipe de atletismo, modalidade lançamento de dardos. (Quando descobriu que javelin era o nome do esporte, associou a sonoridade ao vilão do filme que tanto amava, o cruel javali, e soube, nesse exato instante, que recebera uma missão). Ele era um dos melhores atletas. Por isso, todos acreditaram em acidente.
O dia estava quente, infernalmente quente. O campo de treinamento parecia uma sucursal do sétimo círculo de Dante, no qual só faltavam as labaredas (porque o demônio, como veremos, já estava por ali). A grama perdera sua condição verdoenga e exibia um tom de marrom-morto, devido ao prolongado estio que se acomodara à cidade havia semanas. Ondas de calor provocavam distorções visuais, e o pó avermelhado que subia do saibro, colorindo, sinistramente, o ar, grudava nos olhos, ardente e pinicante, fazendo com que as lágrimas escorressem abundantes. Tudo contribuía para dificultar a visão, entorpecer os outros sentidos, embotar o raciocínio. A natureza e o acaso, afirmaram todos, tiveram sua parcela, e, por que não dizer, a total responsabilidade, sobre os acontecimentos vindouros. E como poderia ser diferente?
Ele nunca faltara um treino, com o respeito ou com o cuidado devido a treinadores e colegas. Treinava, treinava, treinava. Estava pronto para disputar campeonatos internacionais. Pegava o dardo, preparava, corria, mirava, atirava. Cada vez mais longe, cada vez mais preciso. Talvez por isso todos creditassem o acontecido à terrível fatalidade que, às vezes, cai sobre os inocentes.
Disse que não faltava treinos? Disse e repito. Tanto assim que era um dos poucos atletas presentes naquele dia que, como sabemos, estava inexprimivelmente quente, poeirento, seco, ensolarado. E aziago.
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O novo zelador parecia-se com Uriah Heep |
No entanto, o treinador, homem prático, deixou de bobagens. Era melhor começar logo o treino, mesmo naquele calor absurdo. Se a equipe fosse chamada para competir no Senegal os meninos já estariam acostumados, resmungou para si mesmo.
Falamos sobre o calor saariano, a secura infernal, a poeira ardente, a luz deslumbrante do sol, a lerdeza decorrente disso tudo, desculpando, sem pejo, o funesto acidente. Falou-se até dos maus pressentimentos do treinador e de sua implicância com o ajudante arregimentado à última hora. Só não se falou da profunda perturbação do principal atleta da equipe. Quem? Ele, nosso jovem guerreiro massai.
Ninguém estava em seu melhor dia, e ele, de todos, era o mais atarantado, o que mais cometia erros. Isso também embasou a teoria do acaso que permeou todos os acontecimentos do dia.
O treinador, exasperado, suado e quase desidratado pediu, implorou, para que ele acertasse apenas uma, a derradeira, para que todos pudessem dar por encerrado aquele malsinado dia. O jovem ouviu. Preparou-se, correu, lançou. E acertou.
Acertou no ajudante, sósia de Uriah Heep, que morreu na hora, atingido na cabeça por uma lança de 2,3 m, que, pesando 600 gramas e voando a uma velocidade de quase 100 km/h, não teve opção que não cumprir seu destino mortal.
Com a mesma velocidade da arma, passemos pela gritaria, consternação, polícia, ambulância, jornalistas, julgamento, e também pelo veredito judicial: inocente. Condição: livre.
Passemos por tudo isso e vejamos, então, tempos depois, como ficou nosso jovem atleta depois de o assunto já ter sido arquivado e esquecido. Naturalmente, ele largara o javelin, por motivos óbvios.
Óbvios? Não diria isso.
Ele abandonou o lançamento de dardos porque sua missão fora cumprida.
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Guerreiro Massai |
Ainda era atleta, agora em outra modalidade. Corria, nosso jovem guerreiro massai, percorrendo, com elegância, as savanas de sua nova vida. Livre.
(*) Uriah Heep é um dos caracteres mais marcantes já criados por Charles Dickens, personagem do romance David Copperfield, Sua característica era a autoproclamada humildade, exaltada em cada sentença ou atitude, quando, na verdade, era um verdadeiro crápula, hipócrita e traidor, hábil nas manipulações e chantagens, untuoso e sub-reptício. Sua aparência era tão repulsiva quanto seu caráter.
Imagem de Uriah Heep: Fred Barnard https://br.pinterest.com/pin/262475484502623124/
Imagem Guerreiro Massai: Pixabay https://pixabay.com/en/masai-maasai-africa-tanzania-1330808/
Comentários
certamente, não há dúvidas que por trás dos esportes olímpicos há muitas motivações escusas, rsrs...
Beijos, minha querida Zô, que sua inspiração nos entretenha sempre mais e mais!
Agora, Uriah Heep é uma das melhores bandas britânicas de hard rock formada no final dos anos 1960, hahaha.