O VELHO E O SULTÃO >> Sergio Geia

Todos os dias eu o vejo. Velho, cabeça baixa, magro como um doente, a cara tomada de barba. Carrega uma bolsa na mão, às vezes no ombro. Não sei o que tem nela. Talvez alimentos. Blusa. Bugigangas. Uma vez vi que sacou uma garrafa d’água. Bebeu. Depois jogou a água na boca do vira-lata.

Tem o costume de sentar-se no banco e pôr seu companheiro no colo. Fica ali. Acarinhando. Olhando o nada. Desconectado de tudo. Das pessoas que passam. Dos carros. Do mundo que pulsa. Mas outro dia vi que não era bem assim. O gorjeio de um bem-te-vi. Logo vi. O bem-te-vi. Ele procurava. Olhava as copas, os galhos, punha a mão na orelha para apurar o som. Depois sorria e voltava para o seu mundo.

Às vezes, andando mesmo, ele colocava a bolsa no ombro e nos braços, o cão. O bicho pesado, bem-alimentado, um carregar com dificuldades. Não sei por que aquilo. A coleira estava lá, enrolada no pescoço. Mas não. Ele pegava o cachorro, tirava-o do chão, e levava-o nos braços. Ia andando, às vezes acarinhando. Há um amor diferente ali, quantas vezes eu pensei. Talvez tenha escolhido o cão para dar cabo da solidão. Um drible que seja. Já tá bom.

Mas outro dia não resisti e puxei conversa. Estava com alguns jornais na mão, sentei ao seu lado, arrisquei um assunto. De repente, com aquela cara sofrida, aquela preguiça contagiosa, ele começou a falar.

Disse-me que era aposentado, que morava sozinho, e que, pra aumentar a renda, saía pela rua à cata de latinhas. Não era casado, não teve filhos, não tinha família. Apenas o Sultão. Logo percebi que seu assunto preferido era falar sobre a Companhia Taubaté Industrial, uma antiga fábrica de tecidos, a primeira grande indústria de Taubaté.

Ele me disse que tinha trabalhado em diversos setores da fábrica, na fiação, no alvejamento, e que viu de perto morins e cretones. “Sabes o que é um cretone?”, me perguntou. “Um tecido”, eu disse, meio inseguro. “Não qualquer tecido, meu jovem rapaz. Mas um tecido especial, encorpado, feito de algodão, muito usado para fabricação de colchas e cortinas. Paul Creton. Um francês. Taí a origem da palavra”.

Enquanto ele falava sobre tecidos, Sultão parecia prestar atenção. Já devia ter ouvido aquela história milhões de vezes. De vez em quando levantava as orelhas, mexia os olhos. Sultão falava com os olhos.

“A principal diferença entre o morim e o cretone é a urdidura. O cretone tem urdidura de cânhamo. Já o morim, ah!, o morim, é uma bela de uma porcaria, um tecidinho, isso sim. Estou brincando... O morim é um pano mais leve, fino, muito usado na fabricação de chitas. Sabes o que é uma chita?”. Ante o meu breve silêncio, ele não perdoou: “Pois se vê, meu jovem, que és um absoluto ignorante em matéria de tecidos”. Respondi: “Todos nós somos, meu amigo, porém, em assuntos diferentes”. Ele ficou em silêncio. Sultão levantou as orelhas. Um pequeno suspense. “Tens razão. Tens razão”. E continuou: “A chita é um tecido de algodão, de cores fortes, geralmente florais. Os europeus a trouxeram em 1800...”.

Dei-lhe um exemplar do jornal. Ele olhou desconfiado a minha coluna. Depois se levantou, chamou o Sultão e pôs-se a andar. Sem se despedir.  

Comentários

André Ferrer disse…
Belo texto. Sergio, o seu catador de latas é um desses "tipos" que ficaram congelados no passado, lá no ápice de suas vidas, para a nossa felicidade. Todos, no fundo, somos exatamente assim em qualquer altura da vida. Olhamos para trás e nos descobrimos ancorados a um ponto quando esticamos a corrente. Parabéns deste seu amigo de crônicas por aqui!
Zoraya disse…
Que texto bom,Sergio, cheio de sutilezas, dores, doçuras, tristezas, maravilha.
sergio geia disse…
Obrigado André, Zoraya, pelos comentários. Meu personagem real perambula pelas ruas, principalmente aqui na praça Santa Teresinha, bem próximo de mim. E são muitos, todos com uma vontade louca de encontrar um ouvido amigo pra dividir umas histórias. Abraços, amigos!

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