A QUARTA-FEIRA >> Carla Dias >>


Sem pressa, ele vai arrastando a vassoura pelo chão, sem qualquer intenção de empurrar as cinzas para debaixo do tapete dessa quarta-feira.

Em um canto, jaz sua fantasia, testemunha colorida e brilhante da alegria regurgitada em feriado prolongado e samba-enredo.

Escreveu samba-enredo, certa vez, e acertou no alvo. Decretou-se que não havia nessa terra alguém capaz de compor samba-enredo mais bonito, de cadencia ideal para a história contada. Eventualmente, o decreto se apoderou da verdade, que ninguém mais emplacou tal milagre, nem mesmo ele, que assim como alguns rock stars, foi compositor de um único sucesso. Depois disso, sua vida foi tomada por interrogações e interrogatórios.

Vagarosamente, ele vai alisando o chão com a vassoura, sem qualquer intenção de empurrar os confetes para debaixo do tapete dessa quarta-feira.

Sob seus pés, as chinelas que herdou do filho mais velho, em uma inversão de doações que ele não consegue entender. Nenhum pai deveria viver algo assim, tal incapacidade de pagar pelas próprias chinelas e pelas chinelas do filho.

Foi mestre-sala de uma lindeza de porta-bandeira. Com ela viveu as dolências, malemolências, dramas e alegrias do amor. São os cinco filhos muito bem criados - ainda que com dificuldade gritante - e um barraco de cinco cômodos lá no morro - onde ele já não mora mais - comprovadores de que ele viveu o que a maioria de nós não vive: um amor verdadeiro, daquele que não usa máscara, nem mesmo no carnaval, por isso mesmo, está sempre em risco, sofre constantemente de ranhuras e ataques de afeto desmedido, pode cair em precipício em qualquer momento. Bom, ele viveu esse momento de precipício, e mesmo fantasiado de super-herói, não conseguiu resgatar o amor que lhe alimentou por décadas.

Esfalfado, ele vai conduzindo suas mágoas para debaixo do tapete com as cinzas e confetes dessa quarta-feira. Então, enfia-se na fantasia de anteontem e ontem, atualizando a sua desculpa para ser feliz. Entoa afônico seu samba-enredo que é hit único, a voz rasgando o silêncio do barracão. Ainda sabe sambar, tem ginga de mestre-sala, de amor de porta-bandeira, de pai de filhos que doam suas chinelas, de quarta-feira de cinzas de tempestade lá fora.

Durante a duração do samba enredo, seu coração se regozija de arrebatadora felicidade oriunda de homem que se vê na avenida, honrando a alegria do público presente. Os ventos balançam as paredes do barracão, enquanto a chuva interfere em sua performance, feito tamborins enlouquecidos.

Ele samba, pés ligeiros e manobras coreográficas, sorriso escancarado, como se nada pudesse detê-lo. Quando o samba acaba, restando os barulhos extravagantes da tempestade lá de fora, ele se deita no chão, no meio do barracão, cercado por carros alegóricos e fantasias, sentindo-se só como só se sente o rock star de sucesso único, destinado ao esquecimento.

Imagem © freeimages.com

carladias.com

Comentários

Zoraya disse…
Carla, vou guardar essa para um dia em que eu precise chorar, chorar muito, e nao consiga. Primor de crônica.Bjs
Carla Dias disse…
Zoraya... Obrigada :)

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