PRAGAS >> Zoraya Cesar

Jamais gostei de vizinhos. Barulhentos, chatos, inconvenientes, fofoqueiros; a lista seguiria infindável, se eu não tivesse mais o que fazer. Vizinhos, no entanto, parecem nunca ter mais o que fazer que não tomar conta da vida dos outros. Se pudesse, eliminava todos os meus, um por um. 

Todos, a não ser a velhinha que se mudou para o segundo andar há algumas semanas. Ao contrário dos outros condôminos, ela era suave, gentil, falava baixo e não se metia na vida alheia. Era tão franzina, que dava a impressão de que um vento mais forte, uma palavra menos delicada, um gesto mais brusco poderiam quebrá-la em pedaços irrecobráveis. Fiquei apaixonada, seria a primeira vez que não execrava um vizinho, essa raça de víboras. 

Encontrava-a às vezes, à noite, quando coincidia de eu chegar do trabalho e ela voltar do passeio com o cachorro, um blood hound idoso, cego de um olho e doente. Ela sempre tinha um comentário gentil e interessante e eu me deixava ficar (logo eu, que mal cumprimentava o resto da gentalha) alguns minutos, trocando idéias. Num desses encontros casuais, ela me chamou para tomar chá com bolo. Aceitei na hora. Como recusar? Adoro tudo o que ela tinha a me oferecer: chá, bolo, cachorro e conversa interessante. Mas tinha algo mais, eu sentia isso.

Seu apartamento seria quase ascético, não fossem o vaso de cristal com gérberas, por sinal, minha flor preferida; a almofada do velho cachorro e uma estante repleta de discos e CDs de música clássica, a maioria de Chopin, e algumas outras de Henryk Goregki. E uma urna esquisita perto da janela. 

Para tudo tem uma primeira vez, dizem, e eu, que nunca havia entrado no apartamento de qualquer vizinho, passei a visitar D. Malgorzata Grzeszczaczka uma vez por semana. Seu nome estranho me fez apelidá-la de D. Velhinha, e ela, aceitando de bom grado a brincadeira, me serviu mais um pedaço da torta com sementes de papoula, makoviec, típica de sua terra. D. Velhinha era polonesa, viúva de um crápula violento cujo único gesto de bondade na vida fora morrer de apoplexia fulminante. Ela misturou suas cinzas malditas numa fórmula para matar ratos, baratas e outras pragas, que encontrara no diário de sua avó, perdido dentro de um dos baús guardados na fazenda onde moravam, ainda na Polônia. 

Isso tudo foi me sendo confidenciado aos poucos, durante nossos serões semanais, ao som de Chopin, regados a chá e bolo. No dia do meu aniversário ela me presenteou com um pequeno vidro no qual repousava uma camada fina de um pó quase branco, dizendo em voz baixa: 

- Para o caso de você encontrar pragas no caminho... 

Ri comigo mesma, pensando que dificilmente faria uso de tal presente (não gosto de fazendas e minha casa é imaculadamente limpa), enquanto acariciava os pelos ralos do cachorro.

Que foi, afinal, o pivô de tudo o que se seguiu. 

O síndico, aquele desgramado, filho de uma ratazana, que sempre tentara me conquistar e só recebia desprezo, viu no meu afeto por D. Velhinha uma chance ignóbil, como seu caráter, de vingar-se. E convocou uma assembléia extraordinária para discutir a expulsão de animais do prédio. Minha amiguinha ficou tão estressada quando soube, que caiu doente. Aquele sujeitinho ordinário mexeu com quem não devia. Comigo. 

Foi durante essa reunião que reparei seu o hábito pouco higiênico de molhar o dedo na língua para melhor folhear as páginas do livro de atas do condomínio. Minha mente se desligou de tudo ao redor e começou a divagar, divagar, até encontrar o que, inconscientemente, procurava. 

Ao final da assembleia, sem que nenhuma decisão tivesse sido tomada, pedi-lhe o livro emprestado, comprometendo-me a entregá-lo mais tarde. “Bem mais tarde”, sussurrei dentro daquelas orelhas cabeludas, de modo que só ele ouvisse. O síndico deu um sorriso, confiante que eu cederia às suas investidas em troca de deixar minha D. Velhinha em paz. Homens são mesmo tontos. 

Em casa, polvilhei meu presente de aniversário cuidadosa, meticulosamente, nas pontas das páginas do livro, ainda meio úmidas. E às 11 da noite bati em sua porta - sempre gostei das onze da noite, nunca entendi esse fascínio que as doze badaladas noturnas provocam nas pessoas. Ele abriu, dei-lhe meu mais lindo sorriso e pedi-lhe que me mostrasse alguns artigos da convenção. Como que hipnotizada, a respiração suspensa, fiquei assistindo o ritual: ele molhar o dedo na língua, colocá-lo no canto da página imperceptivelmente cheio do pó anti-pragas, virar a página, colocar o dedo na língua, no canto da página, virar a... 

Depois de algumas folhas viradas, simplesmente dei as costas e fui embora. Nada mais tinha a fazer ali. Alea jacta est.

Dormi o sono dos justos, e somente na noite seguinte, ao chegar em casa, recebei a notícia de que o síndico havia morrido. De apoplexia. Fulminante.

Sou loura, linda e tímida, um conjunto perfeito de atributos para os que acreditam em estereótipos, e me vêem como loura-burra. Sou, portanto, um disfarce perfeito, ninguém desconfia de mim. E, no entanto, tenho doutorado em Física, li O nome da rosa e, decididamente, não gosto de vizinhos. 

Essa foi a primeira vez que dei conta de uma praga. Estou ansiosa, esperando a próxima oportunidade.

Comentários

Anônimo disse…
Perfeito! seus contos tem ritmo cinematográfico. Coloca no final que ela guardou ainda um pouco de pó ... hahaha
Anônimo disse…
Morte "à polonesa", aliás a velhinha deve ter aprendido isto durante a 2a guerra em sua terra natal. Vizinhos, cuidem-se!!! As crônicas da Zo são um perigo para qualquer condomínio...rs..rs...Sucessoe um exceltne fim de semana. Aglae
Medo de pensar de onde você tira sua criatividade. srsrsrsrsr
Anônimo disse…
Zo, vc como sempre surpreende!
O sindico mereceu! E quem pensa que louras são burras... hehehe

Cecilia
aretuza disse…
mais um caso para o detetive!! loura, linda e nada burra!
Zoraya disse…
Anônimo 1: pois é, boa ideia, quem sabe ela nao guardou mesmo e teremos ainda outra morte pela vizinhança...E obrigada pelo elogio, "cinematrográfico" foi muito bom.

Aglae: se a gente prestasse mais atençao ao que nossas avós ensinam e deixam escritos em antigos diários o mundo era das mulheres

Vanderley, que bom te ver por aqui de novo. Ri muito com seu comentário, genial. E obrigada, demais.

Cecilia: minhas amigas louras têm, todas, caras de anjo, mas de burras nao têm nada, acho q me inspiro nelas (embora nenhuma seja assassina, ao menos que eu saiba)

Aretuza, o Felipe Espada vai voltar em breve, pode deixar.

Abraços a todos e obrigada!
Erica disse…
Zo, vc é sinistra rsrs
Anônimo disse…
Zoraya, vc sempre se superando rsrsrs Muito boa! Adoro suas crônicas. Vc escreve muito bem e é um perigo kkkkkkk.
Bjossss, Cristina Maria.

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