A PERCEPÇÃO E SUAS PORTAS >> Carla Dias >>
"Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros;
mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias,
existimos a sós."
Aldous Huxley
Na segunda passada, assisti ao Roda Viva, na TV Cultura, com o psiquiatra Valentim Gentil Filho, e achei a entrevista muito bacana. Devo confessar que fiquei meio apaixonadinha por ele. Não, não desse jeito que você tá pensando...
Para mim, é muito bom quando alguém que entende de algo, que é especializado em assuntos complexos (cérebro está no topo da lista), fala com os leigos de maneira simples, que fica impossível não entender o que ele diz. O doutor disse e eu entendi. Isso é apaixonante, não?
Na mesma noite, resolvi clicar em um link de um vídeo do TED, esse site americano muito bacana, que conta com palestras curtinhas e inspiradoras. O vídeo era de 2010, e a palestrante uma pesquiadora chamada Brené Brown. O título da palestra era The power of vulnerability (O poder da vulnerabilidade), e como eu acredito que a vulnerabilidade seja mesmo poderosa, resolvi conferir.
Depois de uma hora e meia escutando Valentim responder perguntas casca grossa sobre depressão, diagnósticos, a situação dos dependentes químicos na Cracolândia, fumar ou não fumar maconha, com a maior elegância e propriedade, Brené caiu feito uma luva no meu estado de espírito. Uma pessoa acostumada às estatísticas, a tratar assuntos que ligamos diretamente às emoções com lógica, reconhece, de forma muito bacana, a importância da vulnerabilidade. O poder dela.
Valentim comentou sobre um livro que ele acha muito bom, que deveríamos ler, quando falava sobre a utilização da maconha medicinal, defendendo que as componentes da droga são importantes, não a droga em si, que acha que tudo bem se usar drogas para recreação, desde que se saiba muito bem o que se está fazendo. O livro era As portas da percepção do escritor e pensador Audous Huxley, e de pronto, bateu-me a informação de que eu tinha esse livro em casa, que o havia lido lá nos anos oitenta, e de que eu não me lembrava muito bem da leitura.
Na terça, eu tinha uma consulta médica. Saí de casa às seis da manhã para uma viagem de ônibus e de metrô, carregando o livro comigo. Eu estava curiosa sobre o meu esquecimento. Quando abri o livro, ainda no ônibus, lembrei-me de que fora uma leitura bem difícil, porque eu não fazia a menor ideia do que era mescalina e ainda não tinha me embrenhado na literatura de Carlos Castañeda, ou seja, também não fazia ideia do que era peiote. Ah, e naquela época não havia como dar uma procurada no Google.
As portas da percepção é um ensaio sobre o uso da mescalina, alcalóide extraído do cacto mexicano peiote, muito usado pelos xamãs indígenas da região, o primeiro do autor sobre as drogas como modificadores da percepção. O segundo livro é o Céu e Inferno, e por isso mesmo, o que eu tenho é, na verdade, a reunião desses dois.
Se me perguntarem como foi a consulta, posso dizer que deve ter sido boa, já que o médico não deu receita nenhuma de remédio, e até acho que ele sorriu várias vezes, durante os minutos que estivemos na mesma sala. Agora, se me perguntarem sobre o livro, posso dizer que não me lembrava do conteúdo porque realmente não tinha compreendido aonde ele queria chegar, não tinha condições há vinte e muitos anos, porque era jovem e não sabia lidar com a pluralidade da percepção.
Entre ônibus, metrô e sala de espera de consultório médico, debulhei páginas e mais páginas, mergulhada na percepção do Sir Huxley. Distrai-me apenas por um momento, pensando no Sergio Miguez, que adora fotografar pessoas que leem no metrô, e de quem eu adoro as fotos de pessoas que leem no metrô. Depois voltei ao fazimento da leitura.
Esqueci-me das drogas, do experimento, permitindo-me fascinar pela forma como ele enxergava as coisas naquele momento. Quando as flores no vaso, as dobras das roupas, as pernas da cadeira se tornaram poesia. Obviamente, a minha percepção deve ser diferente de muitos que leram o livro.
Na verdade, essa minha entrega à percepção de Huxley se sincronizaram a um momento de um livro que estou escrevendo, que pensei que soaria meio maluquice, mas e daí? Eu já havia escrito a passagem quando comecei a ler o livro. A personagem, acostumada a se perder em paisagens, entrega-se completamente ao deslumbre de contemplar um céu azul, como ela nunca vira antes. Em determinado momento, ela se sente tão pertencente ao céu que para de respirar. Ela morre por algum tempo.
A percepção é algo de importância inquestionável nas nossas vidas. Perceber pessoas, suas questões, perceber-nos, as nossas questões, isso pode levar aos propensos aos devaneios poéticos, mas a todos nós pode levar às principais escolhas das nossas vidas.
Manter as portas abertas à percepção pode melhorar o que Valentim deseja: o modo como lidamos com as doenças mentais. Também pode melhorar as conexões humanas, como disse Brené, por meio da vulnerabilidade. Pode fazer a minha personagem perceber que a vida que viveu, durante quase trinta anos, não era assim tão feliz como ela acreditava. E pode, com certeza, fazer com que pessoas escutem o que pessoas têm a dizer, e escolham a melhor forma de usarem essas informações para viverem de bem com elas mesmas.
E foi assim que uma entrevista, uma breve palestra e um livro inspiraram minha percepção a atravessar aquelas portas e se lançar ao mundo.
RODA VIVA -VALENTIM GENTIL FILHO (bloco 1)
Para assistir ao programa completo:
http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva/transmissao/valentim-gentil-filho-4
http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva/transmissao/valentim-gentil-filho-4
BRENÉ BROWN – THE POWER OF VULNERABILITY
Comentários
Abraços, Isabela.
www.universodosleitores.com
Sérgio... Você meio que já um dos meus heróis. Adoro que você eternize, em imagens, que os livros circulam por aí, nas mãos de leitores ávidos. Beijo!