SÓ O AMOR CONSTRÓI >> Carla Dias >>

Quando ele me disse que seu próximo disco teria o título Só o amor constrói, fiquei imaginando que espécie de teia ele estaria tecendo. Conhecendo a obra de Kléber Albuquerque de cabo a rabo, fã de carteirinha que sou, estava certa de que tinha gato nesse balaio.

E passei meses imaginando como seria o pobrezinho do gato. Qual a cor do balaio...

Quando ouvi o disco, pela primeira vez, o gato miou logo na primeira das 15 faixas. Lembro-me do dia em que ele disse: “Até bolero tem, acredita?”. Acreditei, mas tinha de ouvir para crer. E o bolero Só o amor constrói fez o gato correr atrás do rabo feito um cãozinho brincando de descobrir quem é. “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura / porque só o amor constrói mas depois cobra a fatura / com juros das juras que fizeste por mim”. Pronto! Um bolero catártico e com refinada ironia.

As letras desse artista são sempre uma atração a mais na música. Esse poeta que não lança livros, mas declama em som seus poemas e os lança em discos — Só o amor constrói é o quinto de sua carreira, sem contar projetos como Umdoumdoum e Faça Virar Música — sabe dizer cantando as ironias que abarcam o ser humano ao serem impingidos pelo amor, pela ilusão e as desilusões que vêm com elas, pelo medo de amar, pelo amar em excesso, pela desconstrução emocional que nos cansa fisicamente, fazendo-nos dizer em alto e bom tom que “é apenas uma gripe”, enquanto é a alma que anda febril de tanto desejo de cair no mundo.

Em seu novo disco, Kléber faz o que sabe fazer de melhor: ele ousa. Para ousar é preciso um talento daqueles para que a obra não se torne apenas um álbum de ideias inacabadas. É preciso da naturalidade dos que realmente não se apertam por estarem em um lugar diferente do outro. De quem faz o que faz porque sim.

O disco segue com uma releitura de uma canção de Adriana Calcanhoto. Quem conhece Esquadros irá se surpreender com a roupagem ska que Kléber deu à canção. E o toque vamp do serrote de Paulo Souza cai perfeitamente.

Do ska para o samba reggae de Seis Horas, parceria com Adolar Marin. Essa faixa é de uma graciosidade entranhada na letra e também na música, apesar de mencionar a rotina e realidade daqueles que varrem calçadas, amassam latinhas e por aí vai. Apesar dos toques de realidade ferrenha, ela faz com que sintamos uma vontade danada de sair dançando com o par, cantarolando “pra viver de faz-de-conta / trabalhar pra pagar conta”. E salve a disposição para recomeçar a cada dia!

Ao ouvir Geração a imparcialidade é impraticável. O bandolim, conduzido belamente por Estevan Sinkovitz, nos leva a navegar pela letra desta canção como se desfiássemos a biografia de uma geração que muito diz sobre nós mesmos: “desde que o mundo é mundo / desde que o sol nasceu / pela primeira vez nos olhos meus / e nos olhos do pai do pai do meu pai / e nos olhos da mãe / da primeira mãe”.

Cala Frio tem coautoria de Isac Ruiz e vocal de Renato Braz. Nesta faixa, Kléber participa tocando violão e fazendo vocais percussivos. Ela conta com um arranjo belíssimo, de fazer a alma da gente se encantar: “barulho no sótão de novo / bagunça no armário de novo / boletim pintado de vermelho / de novo”.

Musicar um poema de Hilda Hilst, ainda mais um com quê renascentista, requer um tanto de intimidade com a obra. Kléber musicou a canção VIII do livro Trovas de muito amor para um amado senhor. A Vossa Casa Rosada, sexta faixa do disco, mostra claramente como a música dele envolveu a poesia de Hilda Hilst: belamente.

A declamação de André Sant’anna, logo no início da canção Já não tenho medo, nos lembra uma ladainha, no sentido religioso, apesar do peso de suas palavras. Quando Kléber entoa “já não tenho medo / já não tenho nada pra me segurar / só o vento bate no meu rosto / a cada dia nasço outro”, as palavras de André se deslocam para o fundo de cena, ganhando ainda mais dramaticidade, enquanto o canto de Kléber faz contraponto, levando o ouvinte a uma viagem interior repleta de nuances.

Logradouro, com coautoria de Rafael Altério, foi incluída pela primeira vez no disco O centro está em todas as partes, lançado em 2003. Vale a presença dela neste disco, pois se trata de uma canção marcante, que merecia ser revisitada: “canaã, teerã, ceará / algum canto dessa terra / um chão qualquer, pois tanto faz”.


A parceria com Fred Martins rendeu a biografia desfiada em O outro eu, com as percussões de Gustavo Souza, melhor, sua “lateria”, marcando a cadência: “um outro eu surgiu em mim / num dia em que eu não estava nem aí / quando dei por mim já era / vi que era outro e que por dentro já não havia / quem outrora eu sempre fora / ou quem em mim de mim quisera”. Mas a participação de Fred Martins não se limita à coautoria da música. Ele também divide os vocais com Kléber.

Dia de Estrelas, parceria com Élio Camalle, é uma canção singela, que cultiva a sabedoria do diariamente. É daquelas que nos coloca em situações comuns — “era dia de feira / era dia de ver e de provar / era dia de feira no lugar” — apenas para que possamos vislumbrar o adiante: “e eu contava as estrelas / eu não tinha ninguém com quem contar / eu contava do brilho em seu olhar”.

Futebol para principiantes discorre sobre a paixão pelo futebol com a visão e animação de um menino pronto a chutar a gol: “o futebol é uma caixinha de surpresa / toda verdinha e amarradinha por uma linha de branca cor”.

Com introdução com som velado, lembrando um radinho de pilha, com tempero de rock’n roll dos tradicionais, Sete Faces, parceria com Chico César, garante ao ouvinte não só uma vontade daquelas de sair dançando, mas também discorre sobre as faces do amor de uma forma quase lúdica: “o amor tem sete copas / sete espadas, sete fadas / tem o amor / sete ouros, sete sinas / sete quedas sem ter dor / sete quadras, sete usinas / sete léguas de vapor”.



“um filme na tevê / um corpo no sofá / um tempo pra moer / o vidro do olhar / e a vida a passar / a vida sempre a passar / a passar”. Kléber Albuquerque e Zeca Baleiro constroem, através da canção Tevê, uma vitrine sobre quem para e espera e acaba se acostumando a assistir a vida assim, como se estivesse sempre com o olhar cravado na tevê: “comercial de xampu / cerveja e celular / modelos (mentiras) para crer / e credicard / a consumir, a consumir / a consumir o olhar / o olhar”.

Por um triz (a canção que compus ao piano nessa madrugada) é uma balada dolente sobre o quase que todos nós, eventualmente, acabamos por experimentar. Ela também intriga pela sua sonoridade. Intriga, mas isso é bom... O sequencer vintage DR-5 e o tecladinho de brinquedo que Kléber utiliza na instrumentação, casados às performances de Paulo Souza no serrote, definem o clima no qual segue a canção: “meu bem / o que será que a gente tem? Hein? / Será que o seu amor morreu, meu? / Será que só sobrou um réu: eu? / Será que a paixão virou pó? Pô! / E se era para eu ficar só: sou. / O triste é que para ser feliz / foi por um triz”.

Fechando o disco, Ponto Final, uma jazz ballad de coautoria de Danilo Moraes, uma canção requintada com letra em linguagem coloquial, gerando uma combinação agradável: “ponto final / assim no começo / quebra total / revira do avesso / pega até mal / dizer não tem jeito / hoje é normal / formar um par imperfeito”.

A alma do compositor-poeta é de inquietar quem a escuta através das suas canções. Kléber Albuquerque é referência no cenário da música popular brasileira contemporânea, mas é com ancestralidade, tirando sentimento lá de não sei quando, que digo que ele também é de outros tempos que não agora. Há uma sabedoria nele que só os que se permitem observar para enxergar além, pacientar-se para escutar profundidades, é capaz de alcançar.



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Ouça algumas canções do Só o amor constrói no Myspace:
www.myspace.com/kkleberalbuquerque

Fotos: Alessandra Fratus
www.flickr.com/photos/afratus

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Comentários

Isso foi um verdadeiro raio-X da música e da poesia do Kléber. :)
Carla Dias disse…
Eduardo... Ele merece ser ouvido, sabe? Vou sempre colaborar para que isso aconteça, e não só por ele, mas por nós, os que necessitam de boa música.

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