O SEMPRE ESTRANHO NATAL DO VELHO PADRE E DO GATO PRETO >> Zoraya Cesar


Era o interior de uma igreja, sem dúvida. O que faziam ali, no entanto, não sabiam. Mas, em véspera de Natal toda explicação é possível.

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Mesmo sem lâmpadas ou luz natural, o ambiente estava inexplicavelmente claro como uma noite de lua cheia. E vazia. Nem fiéis, nem santos nos nichos, até o presépio estava, adivinhem? Vazio. 

Ah, mas aquela não era uma igreja abandonada. Não mesmo. 

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O homem chegou desconfiado. Não acreditava em Deus, não gostava de padres ou igrejas. Mas de bichos sim, e sentiu-se feliz quando um enorme gato preto pulou em seu colo. Criancinhas e animais sempre se aproximavam dele para brincar, era um ímã. Era também um forte, uma firmeza de viver absurda, a preguiça nunca levou a melhor sobre ele. Trabalhou duro, trabalhou muito e, ainda assim, aos 89 anos tinha aparência e vigor de jovens 60 anos. Seu lema era envelhecer sim, ficar velho jamais. Seu orgulho era não ter deixado dívidas, ter criado duas filhas em bons colégios, sempre botar comida na mesa, teto sobre a cabeça da família e de nunca ter dado incômodo pra ninguém, nem mesmo depois que a idade e os achaques que acompanham se instalaram de vez. Uma rocha. 

O gato preto pulou de seu colo em direção a uma porta entreaberta, de onde vinham vozes indistintas. Medroso o homem não era, criado na roça que fora. Encaminhou-se para lá. 

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Ao longo do dia outros foram chegando, também estranhando estarem ali. 

Chegou a senhora que fora umbandista, católica, kardecista… Em seu coração havia espaço para Santos e Orixás, rosários e búzios, mesas brancas e terreiros. Para fazer pastel de banana com canela e bolinhos de chuva pras netas. Para ensinar que mentir é feio e que uma mulher tem passar pelo menos um batom, mesmo que seja pra ir ao mercado. E que a maior coragem está em sobreviver às perdas.

Chegou o homem que, mesmo ganhando pouco, deu do melhor para os filhos trigêmeos, que, adultos, passaram em bons concursos, formaram família e sempre cuidaram dos pais. Gostava de escrever (segundo os filhos, escrevia muito mal. Mas quem se importa com críticas não vai pra frente) e se acreditava um Dom Quixote, um idealista a se colocar como referência num mundo corrompido e sórdido. Era um homem bom. E isso basta.

Também veio o homem que ensinara a sobrinha a gostar de blues e chá inglês, e que amara profundamente a mulher, os filhos, a irmã. 

Pouco a pouco, a misteriosa sala encheu-se de presenças, música, conversas. No ar, sentia-se o aroma de lar, saudades, miosótis - também chamados de ‘não se esqueça de mim’ – e bolinhos de chuva e… hein? Sim. A senhora das mil crenças fazia bolinhos de chuva que, não fossem Jorge e Sebastião homens santos, estariam sendo disputados a tapa. 

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O homem que gostava de jazz servia Earl Grey para Judas Tadeu e falava do orgulho que sentia dos filhos, pessoas do Bem, que cuidavam um do outro e da mãe.

O pai dos trigêmeos lia com gosto trechos do romance que escrevera sobre a família que tanto amava - e que os filhos definiam secretamente como intragável - para Jerônimo, que o ouvia com paciência de santo que era (mas não sendo bobo, chamou Pedro para acompanhá-lo). 

Depois de oferecer comes e bebes aqui, palavras de alento e fé ali, o Velho Padre parou um pouco para filosofar com Teresa d’Ávila enquanto comiam um típico turrón de Castela.

O Gato Preto brincava com o homem que entrara no salão esculhambando com igrejas e padres. Hahaha, gargalhou o Velho Padre, sem problemas amigo, você é bem-vindo. E acrescentou, piscando, nem adianta chamar pelo diabo que ele não vem hoje. O homem riu também, adorava uma brincadeira de gosto duvidoso. Mas ainda estava inquieto, sofredor. Como havia parado ali? Onde estava, realmente? Sentia falta de algo que não sabia definir o que era. Natal é mesmo uma festa estranha, propícia a milagres. Pois não é que, quando Nossa Senhora aproximou-se dele, o inacreditável aconteceu (se as filhas vissem!): ele pediu a benção. E como milagre pouco é bobagem, ele, que sempre gritara em alto e bom som que tinha alergia a homem, aceitou um abraço de José. Imediatamente seu coração se acalmou e um sentimento de paz e confiança tomou conta dele. 

Dele e de todos os outros convidados que passaram recentemente para o outro lado. Pois essa era uma festa especial para que as almas novas fossem acolhidas pelas antigas e se sentissem aquecidas e confortadas pelo amor e pelas orações dos que ainda ficaram por aqui depois. 

Amanhecia. Um cheiro bom de olíbano se espalhou. O Velho Padre abraçou cada uma das almas antes que elas seguissem seu Caminho de paz e alegria inefáveis, embebendo-as com a certeza de que tudo estava e permaneceria bem, bem demais. E que nem naquele primeiro Natal nem dali por diante ficariam sozinhas ou desamparadas.  

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Restaram  no salão o Velho Padre e Santa Marta arrumando tudo. A Sagrada Família descansava no presépio - ainda teriam um longo dia pela frente, e aguardavam os Reis Magos. O Gato Preto rodava por ali, mordiscando petiscos e esperando, um pouco impaciente, como é afeito aos gatos, que o Velho Padre terminasse o dia com sua já antológica frase:

- Realmente, festas de aniversário são as minhas preferidas.

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Dedicado a todos os que perderam para a morte alguém que amavam e a todos os que se foram. 

Que nesse Natal os que aqui ficamos recebamos a graça da certeza que Jesus venceu a morte. E que agora nossos amados estão acolhidos, na paz e na alegria. E um dia serão pura energia, energia do amor dos que não foram e lembram, e oram e riem e choram e agradecem pelo tempo que tiveram juntos nessa dimensão.

Um Feliz Natal de aconchego a todos os corações são os desejos do Velho Padre, do Gato Preto, meus e, tenho certeza, de todos os que partiram.

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A primeira vez que ouvi essa música tive a sensação de que não falava só da volta à terra natal, mas de um retorno aos antepassados: nosso corpo voltará ao pó, mas nosso espírito voltará ao lar.
Outras aventuras do Velho Padre e do Gato Preto

Comentários

Sem dúvida, esta é a data preferida do Velho Padre e esperar suas histórias virou uma tradição de Natal! Que sejamos todos acolhidos no abraço que conforta a alma a cada vez que tivermos que lidar com a inevitável separação. E que chegado o momento do reencontro, tenhamos mais histórias de vida para contar! Feliz Natal pra todo mundo!
branco disse…
eu poderia fazer muitos e muitos elogios, no entanto, por mais sinceros, e sempre são, sinto que ficariam abaixo do que realmente gostaria de dizer.prefito calar e reler, reler, reler...
Marcio disse…
Festas de aniversário são as preferidas do Velho Padre, e histórias de Natal do Velho Padre são as minhas preferidas.
Todo ano, a Zoraya nos presenteia com mais um texto comovente.
É uma certeza renovada a cada dezembro.
Obrigado, Zoraya!
Érica disse…
Simplesmente lindo!
Albir disse…
Integrar o homem que esculhambava padres e igrejas não é nada para quem, como você, já promoveu acordos entre santos e demônios! Sonhar esse congraçamento é coisa de espíritos elevados como o seu! Que esse sentimento se derrame sobre os humanos tão carentes neste momento! Bjs
Unknown disse…
É de aquecer o coração e desejar que nossos natais sejam mais ternos, mais vivos, mais inteiros...
Querida Zô! Texto lindo e cheio de esperança!
Paulo Barguil disse…
Zoraya, que texto maravilhoso. Indescritível é o que vem depois. Obrigado pela dupla produção!

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