ENCONTRO ENTRE AS LÁPIDES >> Zoraya Cesar



As lápides cinzentas não pareciam menos lúgubres à luz do sol, mas, ainda assim, tinha afeto por todas elas.  Mesmo as enfeitadas demais, que lhe davam a impressão de um palhaço que borrara a pintura. Não era homem de exageros.

Diariamente passeava pelas alamedas, seu Louvre particular - poderia passar a vida andando por ali que nunca veria todas as lápides, ou esqueceria de algumas ao final de um tempo (e seria como se as visse pela primeira vez), ou encontraria novas, ou, ainda, se perderia entre os corredores. Eram muitos nomes,  muitas histórias todas diferentes entre si, sempre havia algo a descobrir. As pessoas, filosofava, não têm ideia de como um cemitério é um organismo vivo e pulsante. Mais que um organismo. Um universo. Ali ele encontrava de tudo. De tudo mesmo. 

Só não encontrava o que estava procurando. 

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Ele olhava, complacente e absorto, uma lápide ainda úmida das lágrimas dos que deixaram ali o ente querido. “Ente querido”… ele implicava com essa expressão, mas, enfim, na falta de outra melhor… A voz feminina sobressaltou-o num pulo:

- Desculpe incomodar, mas o senhor poderia me dizer que alameda é essa?

Ele se virou para olhar, um pouco irritado com a interrupção. A mulher já passara dos 50, bem vividos, as carnes ainda duras, o corpo rechonchudo mas curvilíneo. Tinha o aspecto de uma atriz de Hollywood das antigas: cabelos ondulados louros caídos nos ombros, peitos grandes e audaciosos sob a blusa apertada e decentemente decotada, sobrancelhas finas e arqueadas. O batom, discreto, favorecia a boca carnuda. Vestia-se de bege e preto, roupa e sapatos pouco novos, mas em bom estado. Roupa de sair, pensou ele, para uma entrevista de emprego, um chá com as amigas, um cinema. As unhas, no entanto, curtas e vermelhas, diziam: ainda gosto de sexo, ainda estou no jogo. Era bonita e parecia gentil. 

- Alameda Mnemósine. Você se perdeu? - ele se sentiu disposto a ajudar, cavalheiro à moda antiga que era.

Ela hesitou. Sim e não, respondeu. Eu sempre me perco um pouco quando venho aqui. - seu hálito recendia levemente a hortelã.

Ora, mais uma pessoa que gosta de andar por este cemitério. Como nunca a vira? Curioso, resolveu saber mais. Notou que ela suava um pouco; a roupa, por demais sóbria, não era adequada para o sol da tarde. Apontou para um mausoléu à sombra de um enorme teixo:

- Vamos nos sentar ali? - Ela sorriu entreabrindo levemente a boca, mostrando uma fileira de dentes pequenos, naquele tom acinzentado de quem tomou muito antibiótico quando criança. Sentaram lado a lado, em silêncio por vários instantes. Não havia brisa ou som, tudo ao redor parecia - estranhamente – morto. Finalmente, ela começou a falar, talvez aliviada pelo frescor da sombra.

- Você é viúvo? Recente? Me desculpe, mas você tem a cara triste de viúvo que amava a esposa.

- Na verdade, sim - o laconismo dele intimidou-a um pouco, mas logo ela voltou à carga.

- Faz muito tempo?

Ele se espantou. Isso faz diferença?

- Bem, sim, às vezes faz. Eu também sou viúva, sabe? Amava muito o finado Humberto, meu marido se chamava Humberto, quem se chama Humberto hoje em dia, né mesmo? Mas ele morreu faz um tempo e agora eu me sinto só.

Ele riu do rumo inusitado que aquela conversa estava tomando. Mas gostou dela. Sentiu que era uma boa mulher, um pouco perdida. Como todos nós, disse ele para si mesmo, como todos nós

Ela tirou um cigarro da bolsa, acendeu-o e, de um jeito pretensamente sensual e convidativo, deu duas profundas baforadas e soltou a fumaça para cima, em perfeitos anéis espiralados. Realmente, pensou, ela parece uma daquelas divas de cinema que foram esquecidas pela mídia. Depois de mais algum tempo, sem que ele nada dissesse, a mulher fez que ia falar algo, mas desistiu. Seu fulgor e sex appeal se apagaram junto com a brasa do cigarro que ela esfregou no banco.

- Me desculpe, me desculpe, por favor, não levo mesmo jeito pra isso. - E começou a chorar. Ele ficou atordoado, perguntou delicadamente o que estava acontecendo. 

Ela enviuvara há dois anos, fora um bom casamento, saíam pra dançar, passear, gostavam muito um do outro. Sofrera demais com a morte dele. Mas agora sentia necessidade de companhia, sabe?, companhia masculina, alguém pra conversar de noite, pra segurar na mão, esperar pra jantar… Ele disse que entendia muito bem, mas não percebia o que um cemitério tinha a ver com aquilo. A mulher riu ao responder, as  lágrimas entrando pela boca, a maquiagem escorrendo dos olhos. É ridículo, achei que teria a mesma sorte de minha amiga Dorinha, divorciada, que arranjou um ótimo marido aqui no cemitério, pois viúvos são mais carentes, ainda sentem falta do conforto de um lar, uma parceira, principalmente os mais velhos – me desculpe, não tô te chamando de velho, você é bonitão e elegante, não tem cabelo no nariz, nunca conseguiria beijar um homem com cabelo no nariz, me dá arrepios. Pra ela funcionou. Mas tem de seduzir, né? Eu não sei fazer isso… E chorava e ria ainda mais fortemente. 

Geralmente ele não se comovia com histórias tristes, andando por ali, acostumara-se a elas. Nunca se aproximou de ninguém para oferecer consolo. Daquela mulher, no entanto, ele se apiedou. O cemitério pareceu tomar alguma vida. Um ou outro pássaro começou a cantar, aqui e ali. Uma brisa soprou, farfalhando as folhas do teixo; algumas caíram, atapetando o chão de verde e dourado. Dourada também estava a tarde, o Sol se derramando por todos os cantos. Quando ela se acalmou, o homem, que jamais se aproximara de alguém em seus passeios cemiteriais, puxou assunto. Sentia que ela precisava falar. Conversaram, conversaram bastante, ela era engraçada e tinha muito a contar; ele era bom ouvinte. 

Bong bong bong bong bong bong. Os sinos da igreja próxima badalaram as seis da tarde. Ele se levantou, e fez um gesto para que ela o acompanhasse. 

- Aqui você só vai achar restos e escombros, talvez alguns fantasmas. Você e sua amiga têm planos cármicos diferentes, o que serve para uma não serve para outra. Vá a bailes, vá se divertir. Você encontrará o que procura e tenho certeza que será muito feliz. Seu caminho não é aqui. Acredite em mim. Sei o que estou falando.

Andaram mais alguns minutos em silêncio. O sol começava a baixar no horizonte, levando com ele o calor da tarde. As sombras das lápides e mausoléus, estendidas no chão, formavam estranhos desenhos gelados. Ao chegarem em frente ao portão de saída, pararam. Ela deu alguns passos adiante, mas ele não se mexeu. A mulher olhou para ele, confusa, mas subitamente entendeu. Segurou firmemente a mão dele, sussurrou obrigada! e saiu. 

O homem ficou. O que ele procurava, ao contrário dela, estava ali dentro. Desde que começara a vagar por ali nunca passara uma tarde tão diferente e divertida. Havia esquecido como era conversar diretamente com os vivos. Ainda bem que não a assustara quando ela se aproximou. 

Sentia-se estranhamente otimista e feliz. Algo lhe dizia que sua busca terminara no momento em que ajudara alguém a encontrar o próprio caminho. 

Andou com o passo firme, sem se distrair com as histórias murmuradas ao seu redor. E deu com a Alameda dos Jacintos, a flor dos amores eternos. E encontrou o que procurava há tanto tempo que nem sabia mais. Sentou-se ao lado da lápide da esposa, amor de uma vida inteira. E nunca mais foi visto vagando por entre os túmulos.

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Essa história foi levemente inspirada no conto Entre os caminhos para o Éden, de Truman Capote (in 20 contos de Truman Capote, Companhia das Letras, 2006). No conto de 21 páginas desse grande escritor não havia fantasmas, apenas uma mulher em busca de um marido. Aproveito para agradecer todos os comentários maravilhosos que vocês, generosamente, fazem!


Comentários

Ah, mas que belo, em generosidade e amor! Que possa haver eternidade enquanto durem os amores, saudando nosso querido Vinícius. E, quem sabe, essa eternidade dure mais que um sopro de vida? Amemos pra descobrir!
branco disse…
uma pequena joia...evitando as desnecessárias grandezas... joia de ótimo quilate.
Marcio disse…
Assumindo o risco de me tornar repetitivo:
"He, he, he... hoje ´dia de crônica da Zoraya! Vou escrever um comentário beeem cretino, para manter minha justa fama de escrotinho!"
"Mas... ei! Isso não se faz! Texto comovente, numa hora dessas????"
Zoraya, você arruinou meus planos de escrever alguma coisa irônica, no meu comentário.
Eu NUNCA aprendo que o dom da surpresa está do seu lado. Sobra-lhe talento criativo.
Parabéns!
Que texto lindo Zô, amei! Parecia que eu estava lá, vivendo tudo junto com eles. Fiquei muito tocada com este encontro no cemitério. Parabéns!
Érica disse…
Ahmiguinhaaaaa, que texto inesperadamente romântico... Fiquei comovida... Quase chorei...
Tão fantasmagoricamente fofo!
Albir disse…
Que lindeza romântica! Mas claro que não podia ser num jardim, numa praça ou numa escola. Tinha que ser entre lápides, lágrimas e viúvos.
Zoraya Cesar disse…
Ah, vocês me enchem de alegria,eu rio e me comovo com seus comentários. Ninguém resiste a um romance, né? Dom Albir kkkk, esse seu comentário...
A todos, muito obrigada!
Antonio Fernando disse…
Não nos conhecemos pessoalmente, mas sou seu fã. Suas crônicas são deliciosas. Parabéns pelo dom que Deus te deu de colocar a alma num papel
Carla Dias disse…
Ah! Mas só você mesmo pra escrever história de amor com final feliz que se passa no cemitério. Final feliz para mortos e vivos. Zoraya, você é demais!
Zoraya Cesar disse…
Antonio Fernando - oi, que coisa boa de saber, muito obrigada! Espero sempre surpreendê-lo positivamente.

Carla Dias - elogio da Princesa das Palavras...
Paulo Barguil disse…
Um passeio fascinante e inspirador de vivos entre mortos... Que belo texto, Zoraya!
Zoraya Cesar disse…
Paulo, puxa, obrigada mesmo!

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