NO COMPASSO DO CORAÇÃO >>> Nádia Coldebella

Sei de Dona Zita desde que me conheço por gente. Ela foi amiga da minha mãe e minha professora. Mais que isso, ela me tratou como filho e cuidou de mim. Me dava conselhos sobre futebol, que eu, manino criado brincando na rua, aprendi a seguir desde pequeno. E quando comecei a me interessar pelas meninas, ela também me deu conselhos:

- Júlio, vai com calma - ela dizia - Um dia você encontrará uma moça que fará bater forte seu coração.

E eu respeitava seus conselhos, sobre futebol e sobre o amor, porque sabia que ela entendia sobre os dois assuntos. Filha de imigrantes italianos que chegaram a Sorocaba na década de 20, Dona Zita nasceu em 19 de junho de 1938, no mesmo dia em que a Itália conquistou a taça Jules Rimet pela segunda vez. O pai de Dona Zita, seu Pepe, havia chegado no Brasil ainda pequeno e aprendera a amar o futebol. Naquele dia, seu Pepe mal conseguia se conter de alegria:

- La mia eterna felicità è nata! - Não se sabia se ele falava do título ou da filha, mas não teve jeito, a menina foi batizada de Felicità. 

Seu Pepe, porém, logo lamentou. A grande guerra interrompeu os mundiais por uma década e trouxe, para a italianada, o medo da deportação. Todo mundo se esforçava para viver como um bom brasileiro e alguns até conseguiram mudar de nome. Para driblar o problema,  a pequena Felicità logo foi abrasileirada. Virou Zita e Zita ficou. 

O fim da guerra trouxe o mundial de volta e a satisfação, para o italiano, em poder levar a menina para assistir uma final no Maracanã. Era uma viagem longa e sofrida, mas toda a família foi feliz no carro recém-comprado do seu Pepe. Zita tinha apenas doze anos e deslumbrou-se com a grandeza do estádio. Mas logo seu encantamento mudou de foco. Seu coração disparou quando um rapaz, alguns anos mais velho e sentado na fileira à frente, virou-se para ela e agarrou a sua mão, pulando esfuziantemente em comemoração ao gol brasileiro. Minutos depois, enquanto o Brasil entregava o título aos adversários, ele chorava copiosamente e buscava consolo nos braços do pai.

Aquele rosto ficou impresso na mente de Zita. E, nos anos que se seguiram, ele foi lembrado muitas vezes. Foram anos difíceis. Um mau negócio levou seu Pepe a bancarrota. As dificuldades financeiras dirimiram os bens da família e a doença chegou, cobrando a vida da mãe de Zita. Seu Pepe, desgostoso e desesperançado, esqueceu da filha, do futebol e mergulhou na bebida. Em 1954, quando soube que o Brasil havia perdido vergonhosamente para a Hungria, Zita lembrou do moço que rira e chorava à sua frente. Ela também chorou, não pela derrota, mas porque não tinha nenhuma alegria na vida.

Em 1958, as coisas voltavam mais ou menos à ordem. Seu Pepe recuperara um pouco a dignidade, tinha começado um novo trabalho e até estava meio que enrabichado por uma brasileira. Zita retomara os estudos e agora trabalhava numa escola perto de casa, como ajudante da direção. Era boa datilógrafa e isso lhe garantia um salário decente no fim do mês. Mas a grande novidade era que seu Pepe tinha conseguido comprar um rádio e o dera como presente pelo aniversário de 20 anos da filha. 

Logo a notícia se espalhou e, no dia em que o Brasil disputaria a final contra a Suécia, a casa de seu Pepe e Zita foi tomada por vizinhos e amigos dos vizinhos. E entre aqueles rostos, alguns estranhos, Zita reconheceu o rapaz que chorara quando visitara o Maracanã com seu pai. Seu coração bateu forte quando percebeu que o moço a olhava. Ele achou um jeito de chegar perto dela e puxar conversa sobre o tempo, o jogo e o trabalho. E ela envergonhada, meio tímida. Preocupada com um possível olhar severo do seu Pepe, viu que o pai, depois de umas duas cervejas, já cantarolava em italiano e se deixava levar pela empolgante narrativa que anunciava uma partida excepcional feita pelo Brasil. Zita relaxou e escutou a partida com o moço ao seu lado, vibrando junto com ele e permitindo que suas mãos se encontrassem em cada gol que o Brasil fazia.

Também descendente de italianos, ele havia nascido em 10 de junho de 1934, no dia em que a Itália havia conquistado o primeiro título mundial, após vencer a Tchecoslováquia por 2 a 1. Como todo bom italiano, que precisa homenagear alguma coisa, o pai escolheu a ocasião para chamar o filho de Vitório. Vite. Ele riu, quando Zita contou sobre seu nome.

- Acho que fomos feitos um pro outro - ela corou e ele pegou novamente em suas mãos.  - Posso te ver amanhã? - Seu Pepe, já bêbado, disse uns palavrões, mas acabou dando ao rapaz permissão para visitar a moça.

Zita e Vite tornaram-se inseparáveis. O namoro durou quatro anos, tempo suficiente para ela concluir os estudos, conseguir um emprego de professora e para ele montar sua própria sapataria. Casaram-se em 16 de junho de 1962 e ganharam de presente uma televisão. O aparelho foi inaugurado no dia 17, quando vizinhos e amigos dos vizinhos deram uma passadinha para compartilhar o bicampeonato brasileiro com os recém-casados que, felizes, não se desgrudaram nem um pouquinho.

- Aquele jogo me deu sorte - ela me disse um dia, depois de me dar mais conselhos sobre o coração. É que Vite venerava Zita. Ele dizia que seu Pepe tinha acertado no nome, porque ela era, para ele, La Felicità. 

Em 1966, porém, após a derrota do Brasil para Portugal, ela teve sua única briga com Vite. O passar dos anos havia trazido, para ela, a certeza de não poder dar filhos ao homem que amava.

- Você não terá filhos para dividir o sofá com você - Ela lhe disse, fechando a porta atrás de si e voltando para a casa do pai. Desesperado, Vite bateu insistentemente na porta da casa do seu Pepe. Ela o viu chorando copiosamente pela segunda vez, enquanto ele gritava que não se importava com filhos, que só se importava com sua Felicità.

Zita voltou para casa no mesmo dia e, em 1970, quando o Brasil consagrou-se tricampeão, a ideia de filhos já havia sido deixada de lado. Aquele jogo foi assistido na companhia da italianada que tinha o coração brasileiro. Houve tristeza quando a Itália perdeu, mas também muita festa pela vitória canarinho. 

Eles não tiveram filhos, mas viveram uma vida próspera, cercada de amigos. Durante as cinco copas que se seguiram, enchiam a casa de italianos e brasileiros, todos vestidos de verde e amarelo. Gostavam do movimento, das pessoas que circulavam como se morassem lá. Sentavam-se lado a lado, de mãos dadas, Dona Zita sempre muito arrumada e perfumada, seu Vite sempre cuidadoso com ela. Não viram o Brasil ganhar, mas viram a amada Itália sagrar-se tricampeã em 1982. Também lastimaram as vitórias argentinas e aprenderam a torcer pela eliminação de los hermanos.


Em 1994, a dramática disputa entre Brasil e Itália quase custou a vida de seu Vite. Enfraquecido pelas emoções daquele jogo, seu coração reclamou e ele precisou ser levado às pressas ao pronto socorro. Ele não assistiu ao segundo tempo da prorrogação e nem viu o Brasil ganhar o jogo nos pênaltis. Dona Zita também perdeu o jogo. Ficou ao lado do leito do esposo. Seu Vite só retornou para casa dias depois, aceitando a derrota italiana e consolado pela vitória do Brasil. 

Em 2002, o casal não recebeu amigos em casa. A saúde de Vitte estava frágil e eles preferiram assistir a final entre Brasil e Alemanha sozinhos. E depois de assistir calmamente aos dois gols de Ronaldinho, seu Vitte deixou este mundo com um sorriso, mãos dadas com Felicittá. 

- Como vou assistir outra copa sem meu Vite, Júlio? - Ela morreu pouco tempo depois, deixando em mim a certeza que o seu coração e o do esposo batiam compassados desde o dia em que ela o vira rir e chorar copiosamente por causa do Brasil.

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Uma homenagem a todos àqueles que ainda acreditam em grandes amores.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Nádia, nao à toa Countess Velvet. Que história mais linda! Até meu coração de killer se enterneceu. E viva o amor verdadeiro e romântico! Pq só o Amor salva.
Luiz disse…
Que sorte a do seu Vitto e de dona Zita por não terem visto a de 2014. Rsrs.
Adorei a história! Viva ao amor e ao futebol!
Ana disse…
Adorei!! E fica a dúvida, baseada em fatos reais? rs
Carla Dias disse…
Que história belamente tecida, Nádia! Adorei a narrativa, a forma como os jogos se tornaram a linha do tempo de uma história tão repleta de amor.
Albir disse…
Que lindeza de história, Condessa! Nem parece a escritora que embala meus pesadelos!

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