Alma Parte II >> Alfonsina Salomão

Alma planava em círculos com naturalidade, como se houvesse feito isso a vida inteira. A brisa acariciava sua testa, bochechas e nuca com suavidade, era uma das melhores sensações que jamais havia experimentado. "Quase tão gostoso quanto chupar manga no pé", constatou. Seus longos cabelos pretos flutuavam paralelos ao torso, formando uma capa de super-herói. A menina olhou por cima dos ombros e descobriu, sem espanto, que no lugar dos braços tinha asas, negras como as dos urubus. “Que sorte meu rosto não ter se transformado também, porque os urubus são realmente muito feitos”. Avistou a mãe lá embaixo tirando as roupas do varal e depositando-as numa grande bacia prateada. Aos seus pés estava Joana, que hora cutucava a terra em busca de minhocas, hora puxava sua saia pedindo mamá. A mãe parecia apressada. “Ela é astuta, já sabe que em pouco vai cair um toró”. A mãe parecia não notar a presença da pequena, que ensaiava um choro cada vez que lembrava que estava com fome. A mamada podia esperar, as roupas não; outras já estavam empilhadas num canto da casa para serem lavadas.  

Mais longe estava o pai, capinando a roça com a enxada. De repente o homem parou seu movimento repetitivo, apoiou a enxada no chão, as mãos sobre a enxada e o rosto sobre as mãos. Respirou fundo, de um jeito que Alma nunca o havia visto fazer. Todo seu corpo se movimentou com a respiração, seus ombros e peito levantaram e abaixaram, seu olhar se perdeu ao longe, melancólico. Pela primeira vez o pai, que sempre fora grande, sólido, quase  amedrontador, lhe pareceu frágil como um desses bonequinhos de barro que os retirantes vendiam na feira da cidade. Alma não gostou de vê-lo assim. Ainda bem que a cena não se atardou, em poucos instantes o pai retomou o bate e levanta da enxada e recuperou sua expressão feroz. 

 

Não conseguiu encontrar o irmão a quem pregara uma peça. Decerto estava por aí correndo atrás das saias das moças. “Mal tem bigode e já pensa que é homem. Não vê a hora de se deitar com uma delas. Será que já deitou? Não, não é possível, quem vai querer saber de um moleque arrogante desses?".

 

De repente o vento ficou forte, a brisa tranquila que embalava Alma em círculos se acelerou e virou um turbilhão. Alma sentiu medo. Observou as penas se desgarrarem das asas, que aos poucos retomaram sua forma de braços e mãos, e voarem para o meio do redemoinho, cada vez mais numerosas. Quis gritar, mas não conseguiu abrir a boca no meio do vendaval. Foi então sua vez de ser propulsada para o centro do furacão. Apertou os olhos, serrou os punhos e quando deu por si estava no chão. A queda não foi tão brutal como prometia; bateu com a bunda e o cóccix doía, mas estava inteira. 

 

O vento parou, o tempo parou. Um silêncio profundo e assustador tomou conta de tudo, como se a própria existência houvesse sido suspensa. Não havia mais sol nem nuvens, nem casas pequeninas, menos ainda as pessoas de sua família levando a vida lá embaixo. Apenas terra vermelha por toda a parte.

 

Uma lágrima escorreu pelo rosto de Alma e molhou a terra. Um broto rompeu o solo e, com força e velocidade surpreendentes, se transformou em uma imensa árvore. Flores cor-de-rosa-choque gigantescas apareceram em seus galhos. Um pássaro igualmente grande, maior do quê a própria menina, pousou ao seu lado. “Que queda desgraciosa. Você pode até saber planar, mas aterrissar é outra coisa”. Disse isso e saiu voando, numa rapidez inimaginável para um bicho do seu tamanho. “Devo estar ficando louca”, pensou.

Comentários

Luiz Silva disse…
Que texto interessante! Esse olhar de cima para baixo, ver ascoisas por outro ângulo e entender o mundo de uma outra forma. Em contraste com a crônica, profunda.
Albir disse…
Foi muito bom acompanhar esse voo. Flutuei nas minhas próprias memórias.
Zoraya Cesar disse…
Vejo um conto surreal se avizinhando, voando e estou doida pra ver no que vai dar. que é coisa boa demais eu já sei!

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