Serafina >> Alfonsina Salomão


Muitos sentimentos, muitos pensamentos, muitas palavras e pouca disposição. Era assim que Serafina se sentia. Pensava nisso enquanto se ensaboava debaixo da água muito quente. Sentia a pele picotar, observava as placas vermelhas se formarem, mas não mudava a temperatura. Pura teimosia. Desde que o médico lhe dissera, mais de trinta anos atrás, que sua pele seca e sensível suportava apenas água morna, tomava banhos quentíssimos, no limite do suportável. Antes o desafio era tomar banho frio. Ela se adaptava.

 

Lera em algum lugar que durante o banho o hemisfério racional do cérebro se desconectava e dava espaço para o outro lado, o criativo. Não se lembrava dos termos técnicos nem da explicação, mas sentia que havia ali alguma verdade. Sempre tinha boas ideias debaixo do chuveiro. Como agora, em que as palavras de um possível romance flutuavam prontinhas em sua mente. Imaginação não faltava. O que faltava então? Porque sabia que, assim que desligasse a torneira, faria de tudo um pouco, mas não se assentaria para escrever. Cumpriria os rituais noturnos. Tomava banho pelando, mas passava infalivelmente creme hidratante em todo o corpo. Depois precisaria colocar o pijama, tomar os remédios, massagear o rosto com o creme antirrugas, fazer uma infusão de erva-cidreira ou camomila... Certo, não seria necessário conversar com o marido: para ele, quanto menos se falassem melhor. Mas Serafina era persistente, todas as noites tentava alguma interação. Às vezes funcionava, trocavam algumas palavras antes dele dizer já chega. Outras não. A vantagem de um casamento longo e sem paixão era deixar-lhe tempo para pensar. 

 

O mais difícil era subir no tapete, dissera um professor de yoga, muitos anos atrás. Ele tinha razão. As duas horas de contorções e respirações que seguiam não eram nada, comparadas ao esforço de desenrolar o tapete e iniciar a sessão. Escrever era igual. Durante dias, senão semanas, as frases bailavam em sua mente, pediam para serem deitadas no papel, e ela resistia. Era uma lenta agonia, mais dolorida do quê o momento em que enfim abria a página branca na tela do computador. Por que meu Deus, por que se infligia a longa e angustiante espera? 

 

Assim é o processo criativo, respondera uma amiga. Não estava certa... E as frases que nasciam e morriam entre uma sessão de escrita e outra, para onde iam? Se perdiam no buraco negro das ideias não concretizadas? De boas intenções o inferno está cheio. Então era isto que o ditado queria dizer? Aflorou uma compreensão de alguma parte de alguma coisa, mas não foi o suficiente. Desligou a torneira, cumpriu seus rituais e telefonou para uma amiga. O monólogo com as letras ficaria para outro dia. Por hora precisava de companhia. 

Comentários

Flavia disse…
Uma delícia ler seus textos!
Albir disse…
Protelar, e não acreditar nos fragmentos de ideias, parece ser a maldição de todo escritor. Pelo menos todos reclamam disso.
Paulo Barguil disse…
Rituais, rotinas
Caminhos, labirintos
Buscar-se
Perder-se

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