LITERAL E METAFORICAMENTE >> Carla Dias


Coração dispara quase ao mesmo tempo em que o fragor solta a língua. Percebe-se arfante por medo que ainda não sabe qual. Desconfiado por não ter conhecimento sobre o que encontrará no seguinte. 

No seguinte: levanta-se do seu sofá cansado de apoiá-lo nas preguiças, nas desilusões, na profundez da depressão não diagnosticada para manter a integridade do currículo. Ela que o acompanha e endossa a única fidelidade possível.

Joga o cobertor no chão e se levanta como se estivesse pronto para o combate. Leva quase tempo nenhum para que seu corpo arqueie novamente, alinhando-se ao que o consome e não tem nome.

Tentou dar nome ao que o incomodava. Sempre enxergou verdades nos incômodos. Assim, conseguiu alcunhar a maioria deles, lidando com suas indistintas rupturas. Até então, não sabia que havia aqueles que não tinham nome, não cabiam em estratégias, não eram eliminados com boas práticas de abnegação.

Coração não aceita ralentar ritmo, mantendo-se a ruminar o desespero próprio dos músculos que se confundem com os sentimentos em erupção. É como se o som de bater portas se repetisse, somente para deixar o coração dele assustado, a ponto de o tal se entregar ao desespero de não saber. 

Ainda que por um par de minutos, não saber.

Estacionado - entre o som que o arrancou de um adormecer carente de sonhos e o desconhecer o que houve -, não consegue reagir sem antes pensar nos incômodos que não é capaz de calar com uma boa dose de dedicação.

Então, a luz entra pela janela, esvoaçante e assombrosa na sua capacidade de engolir escuridão. Percebe sua sala adquirir uma vida que nunca morou nela. Mas é uma pessoa lógica, cuida das suas questões, não compartilha infortúnios, tampouco confessa os medos que não consegue eliminar, que acredita serem irreversíveis. Não pensa em demônios, anjos, não é dos que acreditam no sobrenatural. Teme aqueles que são capazes de chutar portas, escancarando-as literal ou metaforicamente.

Respira fundo. O farol alto do caminhão de manutenção ilumina sua sala, enquanto consertam um transformador que explodiu. Não foi porta sendo escancarada pela invasão, apenas a rotina dos transformadores que explodem. 

Um fim barulhento se alastrando-se por uma noite acolhedora de silêncio.

De quando o susto é inevitável.

Joga-se no sofá cansado de acompanhá-lo em suas solidões e filmes em preto e branco. 

Não é a idade que o exaure. Não é a culpa por não ter vivido isso ou aquilo, nem mesmo a ausência de vozes se espalhando pelos cômodos da casa. São os incômodos, esses catalisadores de verdades perturbáveis, que não deixam espaço para qualquer grau de entendimento. Elas que o engasgam com o choro que ele não quer libertar, com as palavras que ele se nega a dizer, com as histórias que ele não pode controlar, com a pessoa que ele não sabe deixar de ser.

Enquanto isso, o mundo gira.

Portas são escancaradas, literal e metaforicamente. Acontece de ser tragédia, mas também de ser esvaziamento de incômodos que tornam algumas verdades pesadas demais para se carregar.

Imagem © Prettysleepy por Pixabay 

carladias.com

Comentários

Como você descreve bem os não ditos, às vezes não vistos, mas sempre muito sentidos (ou muitos sentidos)!
Carla Dias disse…
Obrigada, Alfonsina, por se aventurar pelos meus escritos. Beijo!
Albir disse…
Vivemos tempos de somatizacão em que todas as dores tem dupla face, as que nascem no coração acometem o corpo e vice-versa.
Carla Dias disse…
Poxa, Albir, que lindo o que você disse...

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