PREENCHER SILÊNCIO >> Carla Dias

 


Enfiado debaixo da mesa, um misto de fuga e necessidade de se aquietar. Não que a alegria dos outros o incomode. Não que suas gargalhadas o entristeçam. É que sua mente trabalha desse jeito torto, de depender de um ponto onde possa recostar suas agonias, até que elas se acalmem, parem de gritar. 

Ali, debaixo daquela mesa farta, enfeitada de festa e excessos, o menino tenta ganhar cadência, em busca de recuperar o fôlego. Os perfumes das comidas e bebidas impregnam o ambiente com os desejos mais secretos, sejam eles doces, salgados ou alcoólicos. O dele é de ralentar um pouco o ritmo do seu coração, desacostumado que o tal é de lidar com tanta gente, ao mesmo tempo. O falatório o deixa tonto, às vezes, parece lhe doer nos ouvidos.

Prometeram que seria fácil, bastaria um pouco de esforço da parte dele. Ele tem se esforçado, observando a todos da casa, tentando atender as expectativas desses estranhos. Fácil não será, ele já entendeu, mas como seria bom alcançar aquele ponto, de quando todo o som se acomoda em um sentido de alívio. 

Tantos barulhos diferentes. Se fossem gritos, o som da carne sendo golpeada, até mesmo as ofensas verbalizadas... giroflex dando imagem aos berros dos carros de polícia. Só que aqui são conversas animadas pelo drinque preferido, pelo quitute mais saboroso do cardápio de cada um. São abraços entre uma notícia boa e outra menos palatável. São planos para férias, cursos, fugidinhas até o cinema.

Ele respira fundo, mas engasga ao expirar. Até conseguir recuperar o fôlego, pensa que desta vez não terá volta, morrerá no engasgo. No entanto, no ápice da intimidade com a possibilidade de morrer, seus pulmões se enchem ar. 

Ali, debaixo da mesa, ele observa aqueles pés calçados. Gosta da variedade de cores e texturas, e de como eles dançam, mesmo enquanto apenas caminham. Escapa-lhe um sorriso ao encarar a reação de um par de botas, ao escutar o grito da tia, todo esganiçado: cadê o menino?

O sorriso dele fenece, durante a pergunta dela.  

Ele sai de debaixo da mesa, bem devagar. A mãe é a primeira a vê-lo. Ela tem um sorriso tão grande, que às vezes o assusta. O pai vem na direção dele, perguntando se está tudo bem, enquanto ajeita os cabelos do menino. 

Ainda não disse palavra a eles, mas sabe que o fará um dia. Precisa apenas de tempo para se ambientar a tantos barulhos diferentes. Não que eles sejam piores do que os já escutou... apenas diferentes. 

A mãe diz que ele pode ficar onde quiser na casa, mas melhor que seja à vista: nada de se esconder debaixo da mesa, da cama, da pia. E sorri... aquele sorriso imenso que faz o menino estremecer. 

E se ele nunca entender de onde o sorriso dela vem?

Os pais voltam às conversas com os convidados, bebericando seus drinques, beliscando delícias salgadas e doces. O menino fecha os olhos e tenta não escutar o que dizem. Esforça-se tanto, que o suor corre pela sua testa. 

Prometeram que seria diferente, mas que ele não demoraria a se adaptar. Os pais são bons, gostam de perguntar sobre o que ele sente, se gostou de eles o terem escolhido. Aflige o menino não entender o que sente, para contar a eles, tampouco entende o que é ter sido escolhido. O que ele precisa é daquele ponto, onde recostar suas agonias.

Aquele silêncio ocupado por alguma compreensão que o acalme.

Nesse momento, a tia grita: calados! O menino se assusta e segura a respiração. Vai morrer agora ou depois? Contudo, o silencio deles chega feito um alívio. Ele chega para dar espaço àquele som que encanta o menino: ralentado, leve, ainda que dramaticamente melancólico. Todos parados, rendidos por aquele som, o que o menino acha de uma beleza que ainda não saberia descrever. Encanta-se com o encantamento deles.

Ele se vira e seu olhar se fixa no móvel, ao lado das poltronas. Sobre o móvel, um objeto esplendoroso. O menino caminha até ele e seu olhar se fascina: o girar eletrizante a gerar som. Toda ação dura menos de um minuto. Logo, todos voltam para suas conversas, pedindo ao outro que maneire nos drinques, oferecendo café, em vez de taça de vinho.

O menino, ali, sentado em uma das poltronas, observando aqueles adultos que o escolheram. A mão sobre o móvel, tentando apalpar a vibração provocada pelo som. O olhar escapando, de vez em quando, para se encantar com a rotação do disco. Ele sorri, quase tão grande quanto a mãe, entregue ao silêncio preenchido somente com o som daquela canção.

Então, as agonias se calam. Finalmente, ele compreende que ficará bem. 


Imagem © Gerhard Bögner por Pixabay 

Comentários

Sandra Modesto disse…
O menino fica bem ao preencher o silêncio. Lindo demais o que eu li. Muito obrigada, Carla. Por preencher o silêncio desse sinal de quarta - feira.
Nathan disse…
Essa crônica é um banquete! Muito legal e engraçado o que escreveu... Pude imaginar essa sala com a mesa e esse menino debaixo dela. Carleta sua escrita é muito boa!
Luiz Silva disse…
Era pra eu ter crescido. Ainda não me acostumei com tanto barulho. Sempre procuro tipos de mesas onde possa me esconder. Só que Carla Dias me achou. É de uma sensibilidade incrível, com o padrão Carla de escrever.
Albir disse…
Que interessante, Carla, a sua abordagem desse tema. A adoção não se esgota na sentença. Ela dura para sempre.
Zoraya Cesar disse…
Que espetáculo. Mais um texto arrebatador da Princesa das Palavras. Qta delicadeza e qtos subtextos sutis e esvoaçantes. Obrigada!
Que lindo texto. No princípio achei que se tratava de um menino autista. Você descreve com muita sutileza o contraste entre os dois mundos, o do menino que precisa do silêncio e o do falatório da festa. Obrigada :)
Carla Dias disse…
Sandra, eu que agradeço pela gentileza da leitura. Beijos.

Nathan, obrigada por passar por aqui e ler um dos meus escritos. Fico feliz que tenha se juntado ao banquete. Abraço!

Luiz, às vezes parece que não, mas nascemos para ser encontrados por outros e por nós mesmos. Abraço.

Albir, pois é isso... trata-se de um começo de uma vida em comum. É o "para sempre" de muitos. Beijo!

Zoraya, que bom que gostou dos subtextos, bem onde moram as importâncias. Beijos!

Alfonsina, obrigada pela leitura, pelo comentário. Sim, eu gosto muito de escrever sobre a comunicação entre mundos diferentes, de quando eles parecem semelhantes no que importa. Beijo!

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