DECISÕES >> Carla Dias >>


Ele faz a moeda dançar entre os dedos. Pagamento a serviço prestado, há muito tempo, nascida em país outro, onde a temperatura é mais amena. Por aqui, mesmo quando a temperatura cai, a quentura das decisões necessárias faz com que ele se sinta no quintal do inferno.

Não consegue compreender aqueles que tratam certas decisões com descaso, como se elas não fossem dignas de serem consideradas, mas sim de serem jogadas aos pés da situação, que, faminta que é, não faz outra coisa a não ser se alimentar do que é oferecido.

Compreende que todos vivem delas, que escolhas são como engrenagens que jamais finalizam o trabalho, até quebrarem, de vez. Que decisões são tomadas, o tempo todo, construindo uma estranha rede, nas quais as escolhas cochicham suas histórias, tornando-se o enredo de vida dos seus autores.

A moeda é uma importância. Enquanto a faz dançar entre seus dedos, um e outro diz já ter visto uma dessas, e mesmo isso sendo raro, não importa. Os que ocupam a sala se distraem rapidamente com a piada do dia, que, geralmente, envolve a humilhação de algum sujeito que há muito é tratado como se fosse ninguém. Nunca entendeu o prazer que há em assistir ao sofrimento consumir o outro. Como é possível observar alguém ser diminuído, até restar nada dele, e ainda encontrar fôlego para escarnecer do seu fim?

Andava pela rua, pensando sobre a volta ao trabalho, o fim das férias. Assustou-se quando o jovem esbarrou nele, desculpando-se. Assustou-se com o olhar dele, mergulhado em pavor. Ficou ali, parado, encarando um estranho a lhe contar uma história enredada em absurdos. Mas o susto minguado que o tomou, a princípio, foi se tornando algo muito mais complexo e profundo. 

Nunca foi de dar importância às histórias que estranhos contavam a ele. Raramente, elas valiam o seu tempo ou sua curiosidade. Não acreditava no que a maioria deles dizia, porque nunca foi de compartilhar sobre si, mais do que o essencial, e, definitivamente, somente com aqueles que escolhia. Porém, ali estava, não conseguia se mexer, vidrado nos olhos do jovem. Quantos anos? Quinze, dezesseis. Não conseguia permanecer alheio ao desespero dele, nem mesmo sair correndo, afastar-se, possuído pelo desespero de quem preza pela própria vida.

O tempo também se tornou importância. Nunca ligou muito para ele, porque acreditava que passar era seu trabalho, enquanto o do ser humano era construir vidas, a partir de conquistas. Hoje, ele sabe que o tempo é o tudo sobre o qual muitos meditam. O tudo de quem compreende que não há limites para a criatividade da vida ao criar desfechos.

O jovem lhe beijou as faces. Naquele momento, ele não conseguia se mexer, os olhos feito mar. Nunca acreditou em um estranho, como acreditou naquele homem, que, ao se afastar, antes de ser cercado e atacado por outros quatro, morto por outros quatro, colocou nas mãos dele aquela moeda. 

A moeda perdeu o valor financeiro. Para o mercado, nunca valeu muito. Para ele, o valor é de quem vê a própria vida mudar, como se tivesse girado a maçaneta de uma porta que dava para um lugar distante de quem foi, do que pensava, do que acreditava, até de alguns que amava.

Estava de férias, último dia de descanso, e então, voltaria ao trabalho. Gostava de aprender, e a profissão o ajudava nisso. Ainda assim, ninguém lhe ensinou mais do que o jovem que colocou aquela moeda na mão dele, e que, em um tempo curto, que ele nunca soube mensurar, ofereceu a ele a decisão que mudaria tudo, exceto o tempo, que até do tudo ele é pai.

Até hoje, ele não entende como um estranho conseguiu contar sua história em um intervalo tão curto de tempo. Ele foi breve, sucinto, desesperadoramente verdadeiro. Ele fez com que um desinteressado, pelo o que estranhos têm a dizer, se interessasse tão profundamente por ele, que ficou ali, até o momento em que restasse somente um corpo inerte no asfalto. 

Poderia ter dado muito errado. Poderia ser armadilha, mas quem desconfiaria da verdade daquele jovem? Daquele desespero? Sim, provavelmente há quem consiga desempenhar esse papel de jeito encenado. Poderia ter dado errado, mas ele decidiu correr o risco.

A sala fica em silêncio. Ele entra, cumprimenta as pessoas com um gesto. A admiração e o respeito são claros. Não desistiu de tentar compreender o motivo de, desde tão pequeno, ele tivesse essa postura severa, de quem chegou para resolver os piores problemas. Quem o conhece, sabe bem que ele é uma pessoa das mais afetuosas.

Não foi apenas uma escolha, mas uma decisão tomada ao toque da urgência. Os detalhes não importam, ele nunca procurou por eles. Ao chegar lá, na estação de trem, procurar, desesperadamente, ele o encontrou, miúdo e tão quieto, atrás da lixeira, como se nada pudesse amedrontá-lo. Ele tinha apenas alguns meses, era sobrinho e a única família do jovem esparramado no asfalto. A história dele, preferiu esconder até de si mesmo. Sabia apenas que aquele jovem disse a verdade, e que, aquele bebê precisava ser cuidado, até porque ele aceitara o pagamento, a moeda.

Todas as decisões que tomou, a partir daquele momento, foi para que fosse possível tomar as decisões que muitos não têm coragem nem mesmo de considerar. Não tem sido fácil, prazer é algo raro, e a solidão faz parte da vida que se apropriou dele. Tivesse ficado com ele, talvez o bebê protegido pelo abandono não tivesse se tornado alguém tão extraordinário, capaz de compreender o que importa, mesmo quando tudo a sua volta é feito, criado para distraí-lo disso. Mas não o abandonou. 

A única coisa que o conforta, em um mundo tão desigual, é saber que ele fez o que foi pago para fazer: cuidar de alguém que não tinha mais ninguém que pudesse fazê-lo. Aquela moeda, que tantos dizem ser sem valor, trouxe a ambos até a este momento. 

Ele mesmo nunca pediu para ser quem se tornou. Suas escolhas o trouxeram a essa realidade de fardos e contradições. Ele nunca planejou ser quem se tornou, mas vestiu essa pessoa oferecida, a cada decisão que tomava, especialmente essa, sua decisão mais catártica. Embrenhou-se nesse lugar estéril e criou um universo com o qual consegue se identificar. Criou sua própria prisão, ocupada por palavras ocas, de significados retorcidos, e desejos insignificantes que ocupam o espaço das importâncias, mas é apenas um observador. Aprecia tomar decisões que poucos são capazes de tomar. 

Não tivesse acreditado naquele estranho, decidido que a escolha certa era o risco, não teria, depois de se sujar todo com o sangue do jovem - ao abraçá-lo, aquela carne esgarçada -, corrido na direção que ele indicou. A verdade saiu dele tão justa e potente, que não houve como ignorá-la. E lá estava a verdade, onde ele disse que ela estaria. E hoje também ele toma decisões que a maioria jamais consideraria. 

Antes da próxima decisão, a moeda o leva de volta ao momento em que ela se tornou importância. Era outra temperatura, outra realidade, outro cenário. Bebia seu café, aproveitando a nova paisagem para arejar pensamentos. Sabe a importância que há em se ter a possibilidade de parar e pensar, refletir? Pode parecer que sim, mas nem todos têm esse direito, esse tempo, essa oportunidade. 


Imagem: Loss of Faith © Jan Toorop


carladias.com


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Carla, senti como se um golpe de ar tivesse me imprensado na parede, tirado minha respiração e corrido pra longe com ela, me deixando tonta e sem saber o que pensar. Tantas, tantas, tantas sao as leituras desse texto simplesmente primoroso.
Carla Dias disse…
Zoraya, minha cara, obrigada, mais uma vez, pela leitura, pelo olhar-mergulho nas minhas palavras. Beijo.

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