HISTÓRIA DE QUALQUER MULHER > > Sandra Modesto


Quantos sentimentos sucumbidos? Por que elas olham o mundo e o mesmo não as entende? Não é de novo. No repente...

— Meu nome é Maria. Assim como as Marias esquecidas depois do olho roxo e da costela quebrada.

— Meu nome é Ana. O que eu faço dona? Perdi-me nessa história. 

A gente se perde.

Todos os dias tentando gritar o que está entalado na garganta. 

Ninguém ouve ninguém. 

Quem lê só se espanta. 


Uma narradora prossegue rasgando o tempo: 

“Havia numa cidade de porte (de armas?)”. "Não, calma". 

"De porte médio. Dois lados do poder. Duas mulheres aflitas trocando olhares". 


Um diálogo dá a largada... 

 — Falando sozinha ou pensando alto?

— Aflita. E quando aflita eu falo comigo. 

— Eu também. Fala aí... 

A mulher sentada no banco da praça onde ao fundo há uma igreja resume que está grávida. 

— Eu também. Logo agora que vou estudar em Harvard. Meu Deus! 

— Então. Logo agora que eu ia tentar começar meu curso superior pelo sistema de cotas... 

Nas duas, uma certeza... 

A de não querer ser mãe. 

Maria e Ana, Joana e Luana. Apenas rimas? Não. 

Julgamentos sem fim. 

Do outro lado solidão. 


“O aborto é questão de saúde pública. Bíblia não é constituição.” 

“Preciso pegar uma beira nessa estrada”.

Em 1983 fui mãe pela primeira vez aos vinte e dois anos no dia do meu aniversário. Minha menina. Linda desde que nasceu. Eu não planejei a gravidez, um dia ou uma noite sei lá, eu no período fértil, um mês depois não menstruei. Pronto. 

O tempo passou. Segundo casamento. Eu tinha 31 anos. Planejamos a gravidez. Teste positivo. 

Eu trabalhava em uma escola distante da minha casa. Um dia ao pegar o ônibus numa rua esburacada, o motorista, uma guinada, ninguém ferido. Apenas fui ao alto e voltei em segundos. 

À noite dormindo o sono pesado do segundo mês de gestação, acordei com um sangramento jorrando sem dó. 

Correria, médico, internação. Apaguei. Na manhã seguinte acordei e vi uma enfermeira. Me dei conta do episódio e indaguei... 

— Mesmo com o que aconteceu o bebê ainda está vivo, não é? Ela apenas me olhou triste. Saiu do quarto. 

O médico chegou: 

— Sandra, você teve um aborto. Fizemos uma raspagem no útero. Não houve nada grave. Abortos espontâneos acontecem sem explicação. O feto é expulso. Gravidez no segundo mês, não tem bebê. Tem uma bola de sangue. Vou te liberar. Um mês sem sexo. Depois você pode tentar engravidar na hora que quiser. Um ano depois... 

Nove meses uma barriga enorme e eu fui mãe pela segunda vez. Deu certo. É menino... 

"A luta e debate em torno da descriminalização do aborto no Brasil continua gerando polêmicas. O que as mulheres reivindicam é o direito à saúde. O poder de decidir sobre o seu próprio corpo." 


“NEM MÃE SEM DESEJAR, 

NEM PRESA POR ABORTAR, 

NEM MORTA POR TENTAR” 

(Campanha- Nem presa nem morta)

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Essa foi punk, Sandra! Já começou com o pé na porta, "marias esquecidas depois do olho roxo e costelas quebradass". Impactante. E, claro, mto bem escrito, como sempre!
Sandra Modesto disse…
Poxa, Zoraya, muito obrigada pelo comentário. Agradeço demais.
Laércio disse…
Tema atualíssimo. Tratado com sutileza mas perfeito.
Cristiana Moura disse…
E somos todas Marias... que texto Sandra!!!
Albir disse…
Que importante o seu texto, Sandra! Em tempos tão cinzentos, não gostam de tratar vida e saúde da mulher como saúde pública! Preferem deixar por conta do patriarcalismo da polícia e da religião.
whisner disse…
A descriminalização do aborto permitirá que as mulheres tenham liberdade sobre o próprio corpo. Parabéns pelo texto.

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