NUA, BEIJANDO O SAGRADO >> Sergio Geia
Trespassa o
janelão, e encontra o céu claro que emoldura o Bixiga, paisagem campestre, vazio
coletivo, rico, transbordante, plural. De fora, a árvore da Lina, tão íntima, tão
nua, beija o sagrado, um astro-rei, sol a iluminar São Paulo, que, cinquentenário,
sabe provocar, instigar, demolir, sacodir entranhas — facadas na alma. Alguém
disse que o janelão é ilegal, que contraria o Código Civil? Isso é sério,
gente?
A onda do mar se
arma, se agiganta, vai subindo, crescendo de tesão, sobe, sobe, ereta ela sobe
ainda mais, um paredão verde pronto a se desmanchar, rasgando em mil pedacinhos
de inconsciências, quebrando cremosamente até tudo levar, os pensamentos mais
vis. Limpa, oxigena, zera.
A primavera, as
noites primaveris (“A primavera é quando ninguém mais espera, a primavera é
quando ninguém não, a primavera é quando do escuro da terra, acende a música da
paixão; a primavera é quando ninguém mais espera, e desespera tudo em flor, a
primavera é quando ninguém acredita e ressuscita por amor” — ouço sua voz
guerreira cantando), mas não a noite, primeiro a tarde; sim, a tarde alva, água
que vai virando vinho, nuvem negra que vira chuva, chuva que encharca, gelo que
quebranta, então a noite, gloriosa, pacífica, desliza suave pós-caos.
O caos, sim, o
caos — como eu poderia me esquecer? —, tão necessário, tão importante para
tudo; para agrupar, para organizar, para não morrer. Mas não há caos sem onda, sem
chuva, sem terra rasgando em fendas, sem Oficina.
Me paraliso no
caos, me perpetuo no caos, me entrego no caos, clamo por ele. Caos, você agora é
o meu tudo! Stelarc, Orlan, Lady Jaye e Genesis, Aimee. Gregório, Villa-Lobos, Oswald, Nelson,
Glauber, Fernanda, Chico, Caio, Ney, Zé. “Um clamor, um convocar, um
convulsionar, um amar”, que desorganiza uzyna uzona e gera vida.
Que faz andar, rodar (Roda Viva!), que ayuasca,
peyote, donpedrito, vinhos e ervas embalam, ó doce Xamã, salve a sacação! As
suas! Sua resistência inspira, desorganiza, sacode, convoca, convulsiona, faz
amar! À descolonização! À revolução! Ao descovardamento!
No parque — a imagem vem assim boba, do nada mesmo
—, a toalha estendida, o chão-terra, o sagrado, harmonia doce, intimidade que
acarinha o corpo nu — “o poente na
espinha de tuas montanhas, quase arromba a retina de quem vê” (Chico), ele no
azul do céu, sol desbotando, ar fino, sacolejando por dentro.
Pois o sagrado é você, doce vítima. Desse humanoide capitalista
que tudo destrói, especula, imobiliza, estupra. Sete Quedas, São Francisco.
Augusta? Oficina? Quer tirar o ar, matar por asfixia, asfixia mecânica. Quer
destruir, estuprar, estupro seguido de morte, roubar, matar, latrocínio
cultural.
Não vai conseguir.
Você é pura energia.
P.S.:
1. O Grupo Silvio Santos quer erguer duas torres
no Bixiga, na frente do teatro Oficina, num terreno que lhe pertence; Zé Celso,
que já está no local há quase 60 anos, quer a desapropriação da área, a criação
de um espaço cultural ao ar livre. Numa reunião no Condephaat, o Zé falou: “Nós
vamos morrer, Silvio, nós passamos, mas tudo aquilo vai ficar”. Pensei:
consciência cidadã (lembrei: ele é chefe da minha prima – que orgulho de você,
Brenda!), espinha enroscada na garganta de quem se nega a enxergar as coisas
doces. Pensei também: um monumento às
artes ou mais espigões na selva paulistana? Difícil escolha, não?
2. No facebook,
ou em qualquer outro lugar, defendo o projeto do Zé Celso. Essa causa não é só dele, do Oficina, do
Bixiga, de São Paulo. É nossa!
#Fica Oficina!
#NÃO ÀS TORRES!
3. Primavera –
Zé Miguel Wisnik
4. Ilustração – Facebook
Teatro Oficina Uzyna Uzona
Comentários