O AMOR ENTRE O JASMIM E O MAR >> Zoraya Cesar

Ela entrou, elegante, charmosa. Não era jovem. Chegara àquela idade em que as mulheres tornam-se invisíveis aos homens comuns, interessados apenas em pernas, carnes e coxas. Ela, porém, não era mulher para homens comuns. 

Era para ser apreciada ao som de música clássica nas noites de frio, íntimas, quando as vozes ficam baixas e os toques são suaves; ao som do jazz de New Orleans nos dias de verão, alegres, quando as vozes tilintam ao borbulhar do champagne. Uma mulher de classe. Uma mulher para a vida inteira.

Pequena, rechonchuda, lisos cabelos castanhos cortados estilo Chanel. O vestido cinza chumbo, o casaco de lã azul, os escarpins e bolsa pretos, o andar, os maneirismos, tudo nela era pura elegância. Uma bonequinha, não de luxo, mas de outono. No rosto gentil, a maquiagem realçava a beleza, sem tentar esconder os traços do tempo, deixando que as rugas se expressassem livremente. Uma mulher sem artifícios. 

Ela entrou, pois, no restaurante; este, uma raridade não encontrada em qualquer lista de estabelecimentos, sequer no Google. Um clube seleto, criado por um grupo de amigos e aberto apenas para os sócios e seus convidados. Um lugar para encontros secretos, de amor ou de negócios, ou, simplesmente, para fugir do mundo, descansar, apreciar a vista e a boa comida em silêncio. 

A iluminação era natural, vinda das largas janelas pelas quais se via o mar, o céu e o infinito. O salão, amplo, decorado como um convés de alto luxo; havia doze mesas, espalhadas de forma a que não se ouvisse a conversa entre os clientes de uma mesa para outra. Podia-se circular sem receio de esbarrar em outrem. Serviço de linho e prata, copos de cristal e, ao fundo, a voz suave de Sam Cooke. 

De repente, as faces da mulher se rosearam, fazendo-a parecer uma menina. Com as rugas, o ligeiro sobrepeso, as vicissitudes da vida – ainda assim, uma menina. Uma menina feliz. 

Ao fundo do salão, um homem se levantara. Tinha, pelo menos, dez anos a mais que a mulher. Os cabelos brancos, cortados rentes à escovinha, encimavam um rosto severo e sofrido, no qual se viam as marcas típicas de quem trabalhou durante anos ao ar livre. Alto, espadaúdo, forte, um homem no inverno da vida, mas ainda em plena forma. Sua postura ereta e seu porte não deixavam dúvidas de que fora militar. Tudo nele transmitia poder e segurança. Um forte, dir-se-ia, de quem o tempo e o destino não tiveram muita clemência. 

E eis que, ao vê-la, ele, também, rejuvenesce, o coração cheio das esperanças de quem tem a vida toda pela frente, confiante de que sempre terá as mãos da mulher amada entre as suas. Disciplinado por toda uma vida, só Deus sabia o quanto lhe custou não correr até a mulher e apertá-la em seus braços, nunca mais deixá-la ir. Aguardou, silencioso e firme, que sua dama chegasse, flutuando, à mesa. 

Mergulharam nos olhos um do outro por tempos infindáveis, apreciando o momento único, o perfume, as covinhas no rosto, os olhos azuis-céu da manhã, a delicadeza dela; o cheiro de sol e mar, as sobrancelhas hirsutas e graves, a força dele. 

Ele beijou-lhe a mão, longa e apaixonadamente, puxou a cadeira para que ela sentasse. O maître trouxe os pedidos antes mesmo de ser chamado, sabendo bem as preferências de cada um.

Durante todo o almoço conversaram em voz baixa, olhando-se, sorrindo, e, de vez em quando, entrelaçando as mãos suave, suave, suavemente, como temerosos que, a um gesto mais brusco, o outro se desvanecesse, como uma ilusão. Não havia dos arroubos típicos dos apaixonados, só contentamento intenso, profundo, gratos por estarem, mais uma vez, juntos. 

Ao terminarem, ele acenou sutilmente para o maître, que, logo depois, veio à mesa, avisar que o carro da senhora havia chegado.

Um gentleman até a última célula, até o final dos tempos, ele a acompanhou e, mesmo não precisando, olhou para o motorista como se dissesse:“Essa pessoa é muito preciosa para mim. Cuide que ela chegue em segurança, ou é comigo que você vai se haver”. E tenham certeza que o motorista sabia disso. 

Antes de ela entrar, o homem segurou-lhe ambas as mãos, os olhos cheios de mar e solidão. Ela se soltou, mais gentilmente que uma fada, e passou os dedos no rosto dele, puxando as lágrimas para si, como se dissesse não fique assim, meu Amado, as coisas são como são e nós temos a fortuna de, após todos esses longos anos, ainda nos vermos, tocarmo-nos, sentirmo-nos. Eu te amarei até o final dos dias, dos tempos, da eternidade. Não perca as esperanças. 

Quando ele perdeu o carro de vista, voltou para o restaurante. Ficaria a tarde ali, a pensar na sorte madrasta que o impedira de se unir à mulher de sua vida, no sofrimento dela quando obrigada a se separar dele, nos rumos estranhos que suas existências tomaram. Ficaria a tarde ali, a sonhar acordado com a possibilidade de, antes de morrer, passar um dia, um dia apenas, seu último dia sobre a Terra e o Mar, que fosse, ao lado de sua Amada da Vida Inteira, sem segredos, livres das amarras sociais, livres das responsabilidades familiares, livres.

Sentou-se de frente para o mar, seu outro amor. O maître pigarreou baixo, para chamar-lhe a atenção. Entregou-lhe um envelope, pequeno e perfumado a jasmim – o perfume dela! -, sussurrando, a senhora deixou isso sobre a mesa, creio que para o senhor. E afastou-se.

As mãos grandes e nodosas do homem abriram o envelope com a delicadeza de quem manuseia um bibelô de porcelana chinesa. Dentro, havia um bilhete, onde ele leu, com um sorriso escondido no fundo da alma:

- Um dia, em breve...


Sam Cooke
You're always on my mind





Comentários

Marcio disse…
O texto pede uma continuação.
Aliás, várias.
Poderia seguir até a véspera das bodas de prata do casal, quando o tema de suas conversas vai se tornar bem mais trivial.
Clarisse Pacheco disse…
Lindo e poético, sem perder o mistério do encontro. Amei.
Romanticus pero Machus disse…
A princípio, não fosse o fato de eu nunca ter sido militar e a personagem femini(ssima)na ser pequena e rechonchuda, a autora estaria expondo, em sua crônica, quase que fielmente, uma parte linda – e oculta – de minha vida amorosa íntima.
Só tive certeza mesmo de que não fui inspiração literária porque, além de minhas mãos não serem grandes e nodosas, qualquer ser que me conheça minimamente sabe que minha “delicadeza” jamais permitiu a um bibelô ser por mim manuseado sem ter de, logo em seguida, ser catado, remontado e colado seus pedacinhos.
De qualquer modo, valeu a mexida em minha memória afetiva... um dia... em breve...
Anônimo disse…
Que história delicada! Triste e delicada como alguma parte de nós.
Que possamos viver plenamente nossas histórias de amor!
Albir disse…
Madame Zoraya,
distraído, ouvi a música e o barulho das ondas, e senti o cheiro de jasmim.

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