DESADORMEÇA >> Carla Dias >>


É fim do mundo.

Muitos já encheram seus varais com roupas que não mais serão usadas, em uma última tentativa de desacreditar esse fim. Outros saíram de casa desprovidos do peso da volta, bêbados de agonia.

Abandonar é coisa do fim do mundo. Enlouquecer é coisa do fim do mundo. Insistir que tudo é mentira, coisa do fim do mundo.

Ele não corre, aos berros, exigindo que Deus conserte essa besteira de fim do mundo. Ele não folheia livros sagrados, estapeia as próprias faces, despe-se das roupas como se estivesse a se despir dos seus demônios. Ele não entra no seu carro para matar aquela vontade ilegal de correr a 200 km/h no centro da cidade.

Ele é um ponto pacífico desfilando pelo caos. Um inseto orbitando o impossível sendo digerido pelos seus semelhantes, cada qual com sua histeria. Percebe a cadência dos seus passos? Quem se desapega da pressa durante o fim do mundo?

A menina chora com a violência do desamparo. Perdeu-se dos seus, bem se vê. É criança à beira do precipício, gritando pela mãe, pelo pai, pelo vizinho, por qualquer um que a reconheça. A urgência em ser reconhecida faz seu choro ecoar em amargura intrépida. Ela se debate, como se sapateasse, durante uma crise de birra de criança mimada.

Fim do mundo até nos faz sentir falta de birra de criança mimada. E de bobagens que, em outras circunstâncias, nos tirariam do prumo. Caso fosse possível sobreviver a esse fim do mundo, seria necessário revermos nossa capacidade de deixar para lá. De relevar e tocar em frente.

Ele desfila pelo fim do mundo, os braços gingando ao lado do corpo, os cabelos dançantes. Essa figura se destaca pela sua total incapacidade de perceber o fim. Aquela tranquilidade, os outros adorariam senti-la agora, porque durante o fim do mundo os barulhos são assombrosos, as vozes guturais, o silêncio não é apenas quebrado, mas é o primeiro a deixar de existir. Alguns declaram seus pecados aos estranhos que foram educados a ignorar, enquanto os abraçam em abraço que irá durar até o fim deles.

Durante o fim do mundo, as diferenças se perdem.

Ele pega a menina no colo, diz algo em seus ouvidos e ela se acalma. O mundo acabando e ele acalmando um espírito oriundo do abandono forjado pelo fim de tudo, de todos, do mundo. A menina enrosca braços no pescoço dele, deita a cabeça em seu ombro. Acalma-se ou aceita que para o fim do mundo não há jeito, trato, negociata, promessa que o revogue. Até os milagres não superam tal desfecho.

Não há moral da história. Fim do mundo não pede por conclusão, já que é a própria, e não sobrará pessoa que seja para debater seu significado. Mas que fica a certeza de que melhor é acabar em abraço, não há como contestar.

Como narrador desse sonho, posso dizer que mesmo o fim tem seus percalços. Basta um indivíduo que teime em não acreditar nele, que faça de tudo para não precisar encará-lo. Não provocar o fim é o que nos mantêm aptos aos começos e recomeços.

Como quem sonha esse sonho aflitivo, esse caos de fim do mundo é resumido em apenas uma palavra: saudade. A saudade que a menina, a sonhadora oficial desse fim do mundo, sente de seu irmão, aquele que é seu pai, seu provedor, seu fugitivo de fins do mundo.

Ele continua sua caminhada rumo a lugar nenhum. A menina começa a cantar uma canção qualquer sobre abelhas e ursos. O mundo chegando ao fim com trilha sonora pueril.

Ironia é coisa do fim do mundo...

Até que o despertador faça a sua parte.

Imagem © Vito Campanella

carladias.com

Comentários

Anônimo disse…
Sempre a coerência entre começo, meio e fim. Sem nunca perder o fio da meada. Sempre emoção. Sempre essa leitura boa.

Abraços
Enio.
Albir disse…
Acalanto é tudo que se precisa para o fim do mundo.
Carla Dias disse…
Enio, obrigada! Abraços!

Albir, acalanto é de uma lindeza do fim do mundo, não?
Zoraya Cesar disse…
Carla, talvez um bom consolo quando estivermos no fim do mundo seja ler essa sua poética derramada de amor.
Carla Dias disse…
Zoraya, que a cada fim de mundo a gente encontre um jeito mais agradável de se acabar.

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