PITAGUÁS >> Sergio Geia

 
 

Um canto ressoa da parabólica; estão enfileirados como se fossem um pelotão militar. Revezam-se na melodia esfaqueando o silêncio da manhã; a modulação é própria e lembram uma sinfonia. A visão suave me faz lembrar Zé Vicente, um amigo capixaba apaixonado por passarinhos.
Uma vez, numa praça, em meio ao trânsito e barulho da cidade, ele parou um instante e disse: “Pitaguás”. E continuou: “Não ouve? Eles conversam, Geia. Conversam sim! O que é gorjeio pra nós é conversa pra eles. Pitaguás”. E dizia aquilo com uma comovente emoção. “Pitaguás...”. Eu parei; ouvi. Era uma cantoria alegre. “Ora, são bem-te-vis!”
Lembro-me de que um deles estava em cima do sinal: dorso pardo, barriga amarela, duas faixas brancas (uma na garganta, outra no alto da cabeça), cauda preta. Ficamos um tempo a observá-lo com regalo. Expliquei a Zé Vicente que o nome bem-te-vi está intimamente ligado ao som que ele emite: “bem-te-vi”, muito próprio e encantador. “Pitaguá”, ele respondeu. “Pitaguá...”
Brinquei: “Os bem-te-vis de hoje não gorjeiam como os bem-te-vis de outrora.” Ele me corrigiu: “Conversam, amigo Geia. Os pitaguás conversam.” “Sonoridade única”, continuei. “Indicação de conformismo. É uma ave conformada.”
Zé Vicente, pela primeira vez, desviou o olhar do sinal para deitar em mim um sorriso maroto. Continuei: “Ênfase na primeira sílaba: BEM-Te-vI, BEM-Te-vI,  ápice do agudo no “BEM”, perda de intensidade no “te-vI”, ligeira subida no i” final; conformismo.”
Riu; disse-me que na vida nunca tinha ouvido tamanha asneira. No entanto, não me dei por vencido: “Outro dia vi um diferente; força no ‘VI’: bem-tE-VIIII!, bem-tE-VIIII!, não era gorjeio, era suplício; um grito desesperado de socorro, um desesperado pedido de ajuda. Acho que ele estava passando por algum tipo de necessidade. Mas ninguém ajudou, e ele ficou lá, chorando...”
Ele abandonou minhas tolices e voltou para o sinal. Recordo-me que era um dia frio. O bem-te-vi estava sobre o sinal. No vermelho, pulava pra dentro, encostando-se na luz; no verde, voltava pra cima. O movimento se repetiu muitas vezes. Zé Vicente, com deleite, me explicou: “É o frio, caro amigo Geia; o pitaguá sente frio. Quando a luz acende, ele pula pra esquentar”. Era verdade. Uma cena comovente. O bem-te-vi sentia frio.
Zé Vicente foi embora pra Cachoeiro. Disseram-me que abriu uma vendinha de frutas. Nunca mais o vi. Imagino que nas horas vagas deva ir pro mato observar passarinhos. Nas horas vagas, eu observo pitaguás, e me vem à mente o Vicente.
Ilustração: www.avosidade.com.br

Comentários

Brasilino Neto disse…
Caro Sérgio, que texto agradável, de fácil, de gostosa e afável leitura. O coração que hoje estava meio 'descompassado' se recompôs em suas batidas, pelo alento da leitura. Estou compartilhando. Abração.
Unknown disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Zoraya disse…
Puxa, tá vendo? Eu vivo dizendo q você está cada vez mais rubem bragueano! Bem te vi, Sergio, ficando mais e mais cronista a cada dia!
sergio geia disse…
Grato, amigos. Que bom Brasilino que a leitura lhe fez bem; José Olavo, Rubem Braga é um norte para mim; admiro sua produção profundamente. Estou vendo sim, Zoraya; pra mim é um orgulho saber disso.

Postagens mais visitadas