FELLINI, AGORA EU TE ENTENDO >> André Ferrer
O lugar mais
democrático de qualquer cidade costumava ser o cinema. Lembro-me de que o Cine
Terracota se transformava num caldeirão. Antes e depois das sessões, fatos
curiosos aconteciam por causa do choque entre as diferenças. Na entrada ou na
saída, presenciava-se ou, na pior das hipóteses, protagonizava-se algum
esbarrão.
Na verdade, o organismo
citadino era bastante medíocre. Os espíritos que o animavam tinham dois polos
bem definidos. Um risco no chão era feito e, a partir daí, qualquer antagonismo
só dependia do lado escolhido. Em Terracota, esse jogo foi e sempre será pautado
por duas cores: o preto e o branco. Já no cinema, quando a projeção começava,
ninguém era diferente. Riso, tensão e medo nos igualavam durante o filme. O
incômodo era suspenso até o acender das luzes.
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Amarcord (1973) |
A cidade onde eu nasci
é um lugar esquecido pelo bom senso. Terracota pode crescer e até virar uma
metrópole. Suas ruas podem se atirar ferozmente sobre as plantações vizinhas e
as reduzir a lembranças imprecisas na cabeça dos velhos. O edifício mais alto pode
até se transformar numa piada à sombra de novos arranha-céus. Ainda que se
opere a mais inacreditável das mudanças naquela cidade, eu sempre encontrarei
respaldo para as afirmações que acabei de fazer. Terracota foi erguida sobre
duas colunas: a dos moldadores de tijolos e a dos fabricantes de açúcar. O maniqueísmo
implicado em fundações dessa natureza não permite a instalação de uma terceira
coluna. É muito tarde para qualquer adaptação.
O Cine Terracota, em
resumo, era um ambiente apaziguador. Nele se misturavam católicos,
protestantes e descrentes logo após a missa na Matriz, que, a propósito,
contribuía em mais da metade do público das exibições dominicais. Fervilhante,
o capataz do canavieiro sentava-se ao lado de um dos maiores bajuladores do
oleiro. Uma prostituta com o rosto colado na tela branca voltava-se para trás,
um minuto antes de as luzes se apagarem, e descobria que o perfume não vinha de
uma das suas colegas de ofício, mas de uma irmã franciscana muito asseada. No
escuro, com o facho luminoso matraqueando logo acima da sua cabeça, o cidadão
terracotense esquecia, por uma ou duas horas, aquele abismo aparentemente
intransponível na época, mas que, hoje em dia, não é mais assustador do que um obstáculo
pueril.
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Amarcord (1973) |
Na minha infância, que
aconteceu nos anos de 1980, eu achava o mundo terrível no momento em que
aquelas sessões acabavam. Não era. Hoje é pior. Aquela guerra de província era
travada num tempo em que, entre outras vantagens, as crianças e os jovens
respeitavam os adultos, fossem oleiros ou canavieiros. Não havia favelas além
do Ribeirão dos Ouriços. A Panificadora Brilhante não precisava de um segurança
na porta oito horas por dia. O padre, na missa das crianças, não se via
obrigado a empregar termos como maconha, êxtase ou crack na sua homilia.
Durante a confissão, a pena era quase sempre contra pequenos palavrões, orações
negligenciadas e, no caso dos meninos, a volúpia dos dez, treze, quinze anos.
Tudo era mais fácil. Nossos problemas combinavam com as nossas diferenças. Nada
como hoje, quando insistimos em resolver a complexidade sufocante dos nossos
dramas com aquela mesma forma de pensar em termos de preto no branco.
Nunca fui crédulo.
Quando já completava o serviço religioso obrigatório, contei para o meu pai
sobre a cronometragem que eu costumava fazer, antes de fugir, nos dias de
confissão. Era curioso como um dos padres da Paróquia de São Francisco se demorava
mais com os meninos do que com as meninas. Teria, ele, a mesma obsessão daquele
religioso de Amarcord? Logo depois da Crisma, graças a Deus, o meu pai me
liberou de contar intimidades a um estranho.
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Ornella Muti em Flash Gordon (1980) de Mike Hodges
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Terracota e os seus
onanistas! Muitos ainda estão lá e, invariavelmente, escondem as mãos enquanto
falam das tribunas. Um deles, aliás, padecia de uma ansiedade tão intensa, que
não conseguia esperar o momento apropriado. Lembro-me bem de uma noite
vexaminosa. Foi no cinema, logo depois da exibição de Flash Gordon, que o
sujeito se meteu atrás de um centurião romano, pintura em tecido feita por
Meguinha, o lendário cartazista da casa, pintor de letreiros e alcoólatra
incurável. Naquela noite de 1981, enquanto as últimas pessoas deixavam a sala
de projeção, o soldado de César, que vigiava o saguão de um canto, seu posto,
entre a cortina escura e o balcão de guloseimas, tremelicava como um doente de
Parkinson. Culpa da Ornella Muti, ou melhor, da Princesa Aura.
Nunca assisti a um
filme de Federico Fellini no cinema da minha infância. Acho que só tive esse
prazer em VHS já nos tempos do colegial. Meu preferido, Amarcord, lançado
exatamente no ano do meu nascimento, 1973, assisti, ainda mais tarde, quando já
existia DVD.
O filme tem uma
atmosfera mágica e antinatural que, para mim, é a chave da imaginação criadora
de Fellini. O lugar retratado, uma pequena cidade litorânea, é uma
representação de Rimini, cidade natal do diretor italiano. Foi assim, portanto,
que eu descobri a utilidade das lembranças no momento de inventar e contar
histórias, ainda que alguns elementos ridículos, vergonhosos e trágicos
contaminem o processo. Através do humor e, é claro, com um toque de sarcasmo
diante do absurdo, pode-se fazer arte com a memória.
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Federico Fellini (1920-1993) no set de Amarcord |
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