PEQUENA CRISE [Ana González]
Na vida, temos crises de todos os tipos. As esperadas e as inesperadas, os suplícios e os tsunamis. E há também as mais leves, as sutis que quando chegam nem percebemos. Caímos em uma rede invisível, abstrata e não nos damos conta disso. Como quem não sabe nadar, nos debatemos com cenho apertado e olhar murcho. O incômodo leva um tempo. Mas um dia acaba e nos salvamos do aprisionamento.
Foi assim com minha câmera fotográfica. Recentemente resolvi fazer um curso de fotografia. Nada muito sério, puro lazer. Sempre exercitei a alegria de ver imagens acontecerem, sem técnica alguma. A proposta era aprender os recursos dessa arte. Mandei consertar a máquina Pentax que estava quebrada e guardada há muito tempo, suficiente para eu me acomodar com a Cybershot pequena, digital e prática. Sem saudades da outra.
Com professora
e a turma do curso, andei por aí. Com a máquina antiga pronta para clicar, estive
no Minhocão uma manhã de domingo. Outra vez, em saída noturna, pela Avenida Paulista,
com tripé e filme 400 ASA. Uma espécie de aventura em território conhecido. Na terceira
saída, foi a vez de um domingo inteiro pela histórica e delicada cidade de Paranapiacaba,
entre trilhos, fumaça de uma velha máquina de trem que apitava de vez em quando,
neblina que tornava poética toda a paisagem para turistas ansiosos por aquele ambiente
do século dezenove.

Mas, algo acontecia dentro de mim. Comecei a perceber ao longo das semanas que fazer fotos era mais difícil do que eu imaginava. Estranhamente não era mais tranquilo o gesto de colocar os olhos no visor da máquina, regular luz e abertura naquela que um dia tinha sido minha companheira íntima.
E isso foi me paralisando aos poucos. Um estranhamento deixava as ideias pela metade e eu me negava a fazer os cliques de possíveis fotos. Querendo estar à vontade, eu mentia para mim mesma. Sem entusiasmo, só tinha vontade de perceber os detalhes de tudo que estava sempre pronto para receber o meu gesto de surripiar um pedaço da beleza, de roubar algo do cenário, de fazer o registro de um canto.
A dificuldade técnica - que eu tanto desejara aprender - me surpreendera. Me frustrara. Detalhes demais, rapidez e habilidade a ser desenvolvida. Muito treino seria necessário. Teria que queimar muito filme para me apropriar dos recursos. A poesia de minha imaginação confrontava com a dureza da técnica. Realidade que eu era obrigada a perceber: a incompetência. Mal estar.

A máquina agora pesava como nunca. E, na verdade, tal fato não mudava nada em minha vida. Então, por que me importunava tanto? Talvez porque fosse o fim de um desejo. Nos ombros, havia a presença de um desassossego pela alegria desfeita. Difíceis momentos de um passado recente.
Mas, já passou, - procuro dizer a mim mesma como se diz a uma criança magoada. O clique resistirá. Eu não poderei largar o vício desse barulhinho. Sobra muito além dele. Sobram as centenas de fotos preservadas, os negativos organizados por datas. Um corpo enorme de memória construída.
Sobra ainda o respeito e o carinho pelo trabalho
dos fotógrafos que fazem da beleza sua expressão existencial. Sobra em mim,
principalmente, alguma escondida coragem de continuar na busca de imagens.
Sobra o desejo delas refletidas pela lente da câmera. Sobra o meu olhar que
vaga pelo mundo à espreita.
Com os pés fincados no chão, as mãos firmes na câmera fria. O corpo flexível e a possibilidade de surpresa, o calor de um meio sorriso na boca. Ainda estarei lá, na escuta e no gesto, presença ativa.
www.agonzalez.com.br
Foi assim com minha câmera fotográfica. Recentemente resolvi fazer um curso de fotografia. Nada muito sério, puro lazer. Sempre exercitei a alegria de ver imagens acontecerem, sem técnica alguma. A proposta era aprender os recursos dessa arte. Mandei consertar a máquina Pentax que estava quebrada e guardada há muito tempo, suficiente para eu me acomodar com a Cybershot pequena, digital e prática. Sem saudades da outra.
Mas, algo acontecia dentro de mim. Comecei a perceber ao longo das semanas que fazer fotos era mais difícil do que eu imaginava. Estranhamente não era mais tranquilo o gesto de colocar os olhos no visor da máquina, regular luz e abertura naquela que um dia tinha sido minha companheira íntima.
E isso foi me paralisando aos poucos. Um estranhamento deixava as ideias pela metade e eu me negava a fazer os cliques de possíveis fotos. Querendo estar à vontade, eu mentia para mim mesma. Sem entusiasmo, só tinha vontade de perceber os detalhes de tudo que estava sempre pronto para receber o meu gesto de surripiar um pedaço da beleza, de roubar algo do cenário, de fazer o registro de um canto.
A dificuldade técnica - que eu tanto desejara aprender - me surpreendera. Me frustrara. Detalhes demais, rapidez e habilidade a ser desenvolvida. Muito treino seria necessário. Teria que queimar muito filme para me apropriar dos recursos. A poesia de minha imaginação confrontava com a dureza da técnica. Realidade que eu era obrigada a perceber: a incompetência. Mal estar.

A máquina agora pesava como nunca. E, na verdade, tal fato não mudava nada em minha vida. Então, por que me importunava tanto? Talvez porque fosse o fim de um desejo. Nos ombros, havia a presença de um desassossego pela alegria desfeita. Difíceis momentos de um passado recente.
Mas, já passou, - procuro dizer a mim mesma como se diz a uma criança magoada. O clique resistirá. Eu não poderei largar o vício desse barulhinho. Sobra muito além dele. Sobram as centenas de fotos preservadas, os negativos organizados por datas. Um corpo enorme de memória construída.

Com os pés fincados no chão, as mãos firmes na câmera fria. O corpo flexível e a possibilidade de surpresa, o calor de um meio sorriso na boca. Ainda estarei lá, na escuta e no gesto, presença ativa.
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Comentários
E confiança e técnica, aos poucos, tomarão seu lugar.
Beijo