AMÊNDOAS DOCES (CONTINUAÇÃO) >> André Ferrer
A primeira parte foi publicada em 13/05/2013. ACESSE. Boa leitura!
Diante da janela, tendo
desejado que o sol perfurasse as densas e escuras nuvens exatamente como
acontecia, Dolores Pilar se lembrou de que todas as mulheres da sua família
descendiam de uma personalidade natural da Espanha, uma velha bruxa moura nascida
no califado andaluz de Granada, último reduto árabe na Europa. Feliz, Dolores
Pilar repetia consigo mesma: “Eu consegui!” Triunfante, concluiu que cada uma
das peças necessárias tinham sido movimentadas com regularidade e perfeição.
Inclusive a chuva que, a princípio, ela julgara um imprevisto, acabou se
transformando no toque especial de toda a história; sem a chuva, o visitante
ficaria na empresa, retido pelo verdadeiro cão de guarda que era Vilma, a
esposa.
Dolores Pilar tinha
conseguido.
Antes de acordar, ela
já sabia. Todas as medidas a serem tomadas eram do seu pleno conhecimento e a
manipulação dos elementos que a cercavam, enfim, tinha funcionado. Cada passo
na rua e no térreo, no salão do café, deixava-a ciente do mundo a ser induzido.
Enquanto acordava, cada movimento lá fora e lá embaixo possibilitava que
Dolores Pilar respondesse da maneira mais adequada à perfeita indução do mundo.
Enfim, cada uma das peças tinha o seu tempo e lugar. Às dez para as oito, a
sirene da troca de turno tocou do outro lado da rua. Ela sabia que a empregada
e o novo ajudante logo estariam apurados no serviço do desjejum dos operários
da Fundição Ribamar. Havia fregueses no balcão e nas mesas. Lígia tilintava
louças na pia. Cláudio, pouco à vontade ainda, abria e fechava a portinhola
rangedora da cozinha. Trocara o trabalho em frente, na fundição, pelo café
sempre movimentado e pela massagem na patroa nos dias em que ela estivesse com
a coluna travada e não aparecesse cheia de ordens logo de manhã. Exatamente como
naquele dia frio e chuvoso; dia de inegável triunfo, aliás, para a tão
humilhada Dolores Pilar! Exatamente! Conforme a patroa e suas queixas de
artrose preparavam gradativamente, peça por peça, nos últimos dias, o novo
ajudante subiria para aplicar a massagem com bastante óleo e vigor. A visita,
sempre pontual, encontraria então o jovem sobre um dorso nu e besuntado de
mulher. Tinha conseguido. A chuva e a tristeza expulsadas da fundição e das
casas. Sobre os telhados, a luminosidade mais quente e merecida.
Lá de cima, ela
percebeu quando os ombros escuros de Ribamar apareceram. Jamais se acostumaria
com a imagem daquele homem atravessando a rua para voltar apenas uma vez por
mês só pela obrigação de levar o dinheiro. Na época dela, quando Maria era
pequena, o homem, que também era mais novo, retornava inúmeras vezes por dia
para um lar feliz e completo. A fundição instalada no outro lado da rua não
passava de uma modesta serralheria.
Logo atrás, apareceu
Cláudio. Aonde iria o rapagão? Ela gostava particularmente dos braços. Ainda
que parecessem desengonçados, àquela distância, a se enroscarem no guarda-chuva
fechado. Enquanto isso, à direita, na frente do escritório da fundição, Vilma
esperava Ribamar; as duas mãos aplicadas na cintura, batia os pezinhos numa
possa d'água. Depois, ela disse alguma coisa chorosa, enlaçou o empresário que
chegava e arrastou-o até o carro. “Inacreditável!”, disse Dolores Pilar na
janela. Simplesmente não acreditava na tolerância daquele homem em relação ao
controle exercido pela segunda esposa. Bem feito! A chuva, por sorte, atrasara
Vilma nos afazeres domésticos na mansão que Ribamar construíra depois do
divórcio. Casa elegante, localizada longe daquele bairro industrial. Tão logo a
serralheria cresceu e se transformou em fundição, Ribamar planejou e construiu
a casa dos seus sonhos num bairro nobre. Uma vez por mês, Vilma tentava
impedi-lo de ir pessoalmente entregar o dinheiro da mensalidade de Maria.
Inventava obrigações e passeios. Persuadia-o a enviar um mensageiro.
Vendo o carro partir, o
corpo inteiro de Dolores Pilar ganhou severidade. Todas as articulações doíam.
Sisuda, ela resmungou: “Vão passar o dia no campo?! É o quê veremos! É o quê
veremos!”
Dolores Pilar tinha
ficado muito tempo em pé, diante da janela, enrolada na toalha. Vendo o carro
dobrar a esquina, lembrou-se de um tipo de boato reincidente no balcão e nas
mesas do seu café. Uma das operárias amiga de Vilma tinha contado a sua
empregada Lígia sobre os passeios que o casal vivia fazendo na zona rural a fim
de encontrar uma chacarinha com piscina e pomar. Conversas assim, todo santo
dia, era demais! Tinha suportado muito por muito tempo! Dolores Pilar achava
que adiara demais a reanimação daquele poder ancestral.
“Eu devia ter começado
há muito tempo!”, disse a mulher enquanto se afastava da janela.
Sentada na cama, fixou
os olhos numa nesga de nuvem negra que logo se juntou a outra, também negra e
pequena, e a mais outra e a outra e a outra construindo, assim, uma grande e
carregada sombra.
“Cláudio fez muito bem
de ter levado um guarda-chuva.”
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