MAIS DE TRINTA >> Albir José Inácio da Silva

“Não confie em ninguém com mais de trinta anos”
Marcos e Paulo Sérgio Vale

Fui jovem por muito tempo e ainda não me acostumei às vantagens e conquistas da velhice. A velhice tem avançado muito nos dois sentidos, ficando mais velha e conquistando coisas. O que ainda atrapalha é a inveja.

O cabelo branco, que alguns consideram problema, é na verdade uma vantagem. Primeiro porque, se está branco, é porque há cabelo. E segundo, porque é ele que abre as portas para outras vantagens.

Uma dessas vantagens é a prioridade no atendimento dos bancos. Isso garante, além da companhia de muitos outros idosos, o ódio dos não idosos. Algumas agências têm agora um cercadinho com cadeiras, nunca suficientes, que tem causado desarmonia entre os da mesma idade. Os outros, invejosos, chamam esses lugares de “Corredor da Morte”, “Vestibular de Cemitério”, “Último Saque” e “Encerramento da Conta”.

Outra conquista importante são os descontos em eventos culturais. Estamos lotando os teatros. Mas lá estão os “sem desconto”, reclamando porque têm de chegar cedo, antes das vans. Vans que a inveja chama de “rabecões” e que estariam despejando centenas de bengalas, até só restarem cadeiras atrás das colunas.

Temos direito a vacinas que curam ou evitam muitas doenças. De novo os invejosos espalham boatos de que a injeção seria a solução final dos nazistas, utilizada aqui para resolver o déficit da previdência.

Mas essas conquistas não são nada comparadas com o olhar carinhoso, ou piedoso, que eles nos dedicam, como se vissem lápides datadas em nossas testas.

Assim como os jovens, temos o direito de olhar para onde quisermos. Só demoramos mais para ver. Temos que fixar os olhos. Isso às vezes nos rende comentários do tipo “tarado” ou “velho babão”. Isso não é verdade. Não babamos. E se babamos é por outras razões. Talvez glândulas salivares muito poderosas. Aliás, a inveja tem nos atribuído outras incontinências molhadas. Até os médicos vivem nos dizendo para repor o líquido perdido. Entendem a ironia da insinuação?

Na verdade todos são médicos a nos dizer o que comer, o que beber, como andar. Todos são advogados e nos dizem o que comprar, o que vender, com quem casar. Todos são professores e babás que vivem nos ensinando o que fazer e aonde ir. Estão, no fundo, incomodados com a nossa liberdade.

Mas estou preparando a vingança. Verão, ó invejosos, quando acabar o reumatismo, a visão melhorar e desaparecer o labirinto, como é que vou tratar vocês! Quem ri por último, ri melhor. Me aguardem.

Comentários

Bela crônica, Albir. E adorei o final bem-assombrado. :)
Marina Silvinha Irmã Furtado disse…
É verdade... apesar de estar longe de passar por estes transtornos, tenho irmão que já adentrou a algum tempo os portais da tal idade! E é reconfortante saber que é possível passar por tal mudança física e mental, mantendo o bom-humor e a mente ativa. Parabéns ao autor!! Apesar de estar longe de envelhecer, quero conviver com velhinhos como você: bem-humorado e conservadinho!! E tenha certeza que eu e nunca vou te deixar em pé no ônibus e nunca vou desrespeitar seu direito de "furar" a fila no banco e no elevador!! Ah e conte comigo também para as fraldas!! Bjs
albir disse…
Obrigado, Edu. Abraços.


Marina Silvinha Irmã Idosa Roubada,
advirto-a de que o narrador é fitício, apenas um personagem, nenhuma semelhança guardando com este jovem cronista. Beijos.
Cláudia disse…
Albir, a "experiência" de alguns jovens às vezes se traduz na ignorância coberta de impaciência com os que já passaram de 30. Mas eles chegam lá. Vou refletir bastante, pois eu já passei... rs
Carla Dias disse…
O que o olhar não faz pelo assunto, não? O dia em que vi as cadeiras no banco, ri sozinha, pensando que bom que, diante de uma longa vida de batalhas, ao menos eles tenham onde se sentar, enquanto esperam a burocracia se decidir.

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