FIM DE EXPEDIENTE >> Carla Dias


Geralmente, não se importa. Fica quieto, escuta a bronca, então sai da presença do chefe e recorre aos subterfúgios distraidores de um nervoso disfarçado. Limpa os móveis do escritório várias vezes ao dia. Não há quem contenha o pó de construtora a invadir o recinto ao som das britadeiras.

Em suas roupas de classe que não é a dele — fazem questão de lembrá-lo disso sempre que percebem a presença do funcionário — vendedores e vendedoras comercializam sonhos em condomínios que são praticamente países independentes... ao menos no catálogo. No concreto preenchedor de futuro, as facilidades são commodities, mesmo quando, para alguns, não geram conforto e segurança, mas sim parcelas quase impossíveis de pagar, em benefício de um status que nunca será o deles.

Sua vida não é grande coisa. Apesar de a sola de seus sapatos — e sua vassoura e panos de limpeza — tocarem tal iguaria residencial, seu corpo não passeia pelos corredores de piso de madeira nobre, mas sim trafega sobre eles, organizador que é de uma ordem orquestrada pelo silêncio.

Lembra da mãe ensinando, chinelo na mão, que ele não era senhor do mundo nem conhecia cada ser humano do planeta; que seu destino dependeria sempre de aprender com a realidade e com as pessoas.

18h – Fim de expediente.

Um vendedor pede para ele passar mais um pano nos móveis do escritório antes de sair. É um indivíduo que não gosta muito dele, especialmente depois de o funcionário tê-lo escutado comentar sobre fragilidades no projeto da lavanderia do condomínio. As pessoas não notam sua presença, a não ser que ele se coloque no caminho, ao executar seu trabalho, ou escute o que não deveria.

Escuta absurdos o tempo todo, mas não somente no trabalho, e assume quando diz os seus. É assim que sua realidade convive em paz com sua condição. É assim que os escuta e continua a fazer seu trabalho, sem que a vergonha ou a raiva dominem sua existência.

Mas há o que não consegue justificar. Nunca vai entender os jardins internos sendo considerados mais importantes que os externos, ou a facilidade de muitos de definir o outro ao ignorá-lo.

Entra em casa, tira os sapatos e os deixa na porta. Acende as luzes. Segue até a cozinha, destranca a porta e vai para a área externa. Pega o livro sobre o banco e se senta. Nele, o pai contava que o bisavô — sujeito nervoso e esquisito, mas justo — costumava se sentar. E nele, no colo dela, a mãe lhe ensinou camadas de realidade ao contar histórias sem filtrá-las: amor, fatalidade, guerra, morte, vida em curso e finais inusitados de telenovelas.

Abre o livro e começa a leitura. Ao longe, o som de todas as quartas-feiras, tocado por músicos do bairro, no restaurante do melhor amigo do pai — seu padrinho. A música deles substitui o som das betoneiras, ecoando em sua cabeça. 

O olhar foge das palavras quase decoradas e se lança ao horizonte. O jardim de seu vizinho é um dos mais bonitos, o maior do bairro, e vive ali, na divisa do quintal de sua casa, invadindo sua propriedade, conversando com o modesto, porém encantador jardim que a mãe criou para ele, quando ainda era apenas um menino curioso.

Seu olhar o visita sempre que possível. A cerca baixa de madeira é apenas marcador de terreno, não impedidor de apreciação.
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carladias.com.br

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Existe uma dignidade íntima que nem pode tirar, mesmo qdo não se é visto ou ou ouvido - ou talvez mesmo qdo se é visto ou ouvido apenas em certas ocasiões ...
Jander Minesso disse…
Que texto bom. Só o segundo parágrafo, eu li umas dez vezes seguidas. Não vou escrever um palavrão porque você não gosta, mas achei superlativo num nível que só um palavrão expressaria.
Zoraya Cesar disse…
parece o roteiro de um filme japonês, sem palavras, mas repleto de significados e beleza
Albir disse…
Recolheu-se à dignidade que faltava na ostentação vazia.

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