AZUL NÁUTICO, VERMELHO SANGUE >>> Nádia Coldebella
A casa descorada de madeira era bem velha, seca e podre. Não havia cerca que a separasse da rua. Não tinha nem grama — esta havia sido queimada sem dó nem piedade pelo sol do verão infernal. A terra bruta e vermelha parecia sangue seco, enterrando um pouco do cascalho cor de telha que um dia fora um caminho.
O carro estava parado na frente, meio dentro do terreno, meio fora dele. O inconfundível Dodge azul metálico náutico! Maldito carro! Seu primeiro filho havia sido feito no banco de trás, quando ela ainda era moça nova, bonita e cheia de sonhos. Por causa do Dodge, ela foi ficando. Toda vez que brigavam e ela ia embora, sempre a pé, ele a seguia devagarinho, de carro, pedindo perdão e gritando juras de amor. E ela se derretia, entrava no carro e faziam um filho no banco de trás.
Agora ela tinha cinco filhos do mesmo homem. Mesmo assim, ele a havia deixado. Foi a vez dela de ir atrás, a pé. Continuava andando sob o sol, trabalhando aqui e ali para colocar comida na mesa. Ele continuava andando de Dodge azul metálico náutico, atrás de uma aqui e outra ali, para estacionar em qualquer casa sem portão.
Ela entrou no terreno e esgueirou-se pelo caminho de cacos, meio escondida pelo carro. A porta marrom-trevosa estava fechada, mas havia uma janela entreaberta. As cortinas de R$ 1,99 dançavam pela abertura, procurando ar. Que tipo de pessoa compraria uma cortina tão feia?
Passo a passo, na ponta dos pés, chegou até a janela. Agora ouvia batidas e murmúrios abafados. Esticou-se para olhar, apoiando-se cuidadosamente na parede. Algumas cascas de tinta velha caíram, revelando a paleta desgastada do que já fora rosa e, em tempos mais antigos, azul. Uma loira amarelada de farmácia, movendo-se como uma serpente, acomodava o corpo suado e nu de um homem meio gordo e baixinho que, com alguma dificuldade, avançava e recuava. Ambos deleitados, saciavam-se despudoradamente um no outro. Não perceberam o rosto contorcido na janela.
A mulher demorou um pouco para entender, mas quando o que viu fez sentido, não sabia onde guardar tanta dor. Ela entrou pela barriga, como um soco! Subiu e expôs todas as suas entranhas, revirando seus órgãos e arrancando o ar de seus pulmões. Encontrou o caminho e seguiu pelo peito, até se instalar no coração. Ali a dor sambou, pisou, pulou, arrastou-se, cravou suas garras e gozou. O pobre órgão tentou resistir, tentou se impor, mas era tarde demais: ela já tinha tomado conta sem que ele pudesse notar.
Antes majestoso, o coração apequenou-se, apertou-se, espremeu-se no cantinho e deixou a dor pulsar. Foi naquele momento que, desesperada, pensou que aquele seria seu último dia sobre a Terra. Seu coração não iria aguentar.
Mas a dor não se contentou.
Subiu mais um pouco, rasgando sua garganta, roubando-lhe a voz. Cruelmente, encheu suas narinas e jogou água em seus olhos, que, de tão vidrados, já não viam mais nada. Na verdade, viam sim: uma vidraça quebrada, borrada pela água da chuva que a encharcava por dentro e queimava por fora.
Quando a dor chegou ao cérebro, a mulher perdeu-se. Os pensamentos ganharam vida própria, e os mais negros assumiram o corpo amortalhado. Já estava distante demais e, como uma observadora, via a si mesma: o corpo curvado, as mãos sobre o peito arfante, o rosto branco e patético de desespero.
Tentou gritar para si mesma: “Pára, sua burra, pára!” — mas a dor trancou também os ouvidos. Retirou o isqueiro do bolso e acendeu. Riu histericamente, pensando em como é fácil lenha seca queimar. Depois não se lembrava de mais nada. Apenas de que virou fumaça quando entrou no Dodge, deu a partida e viu, pelo retrovisor, a casa pegando fogo.
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Este texto faz parte do projeto "Cronica de um ontem" e foi publicado pela primeira vez em 19 de novembro de 2019, com o título de "Rejeitada". O que não contei na época é que foi inspirado numa história real.
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