Esmeralda >> Alfonsina Salomão

 

Esmeralda estava no meio da gira, esperando sua vez de conversar com um médium, quando seu corpo se curvou e suas mãos foram às costas. “Que postura esquisita”, pensou. Quis se reerguer. Não era impossível, mas também não parecia natural. Aceitou e permaneceu naquela posição pouco confortável. Era gira de Preto Velho. “Alguma entidade deve ter se aproximado de mim”, concluiu, calma. Não tinha medo; ouvira falar que Pretos Velhos eram espíritos antigos, do bem e sábios. Estava inclusive achando a experiência interessante, quando viu que sua amiga a olhava e soprava em sua direção. Mais tarde, a amiga explicaria que estava tentando afastar a entidade. Ela também enviou um dos membros do templo até Esmeralda. O rapaz pegou sua mão, ofereceu um copo d’água, instruiu-a a respirar e só saiu depois que ela recuperou a postura ereta.


Esmeralda ficou um pouco decepcionada. Não frequentava nenhum templo, aquela era a terceira ou quarta vez em que ia numa gira. Mas sentia afinidade com os cantos; os toques do tambor pareciam conversar diretamente com sua alma. Sentia que pertencia àquele lugar e estava feliz por experimentar tamanha proximidade com uma entidade. Gostaria de ter ido ao cabo da experiência, descobrir aonde aquilo iria dar.


Anos depois, um amigo a convidou para outra gira. Esmeralda topou. Por coincidência, era dia de Preto Velho. “Uma boa ocasião para entender melhor essa história”, pensou. Chegando, achou o lugar apertado. Os bancos estavam todos ocupados, várias pessoas esperavam em pé, de onde estava mal conseguia ver o altar. Estava quente, o ritual não começava nunca, deu fome e vontade de fazer xixi. Quis ir embora, mas aguentou.


Quando chegou sua vez de consultar com a médium, ousou dizer o que até então não havia formulado: “Acho que uma Preta Velha me acompanha”. A médium confirmou. “O que posso fazer?” – perguntou. “Agradecer”, respondeu a médium, simplesmente. Pareceu pouco. Esmeralda era sonhadora, ia longe nas suas fantasias. Já estava imaginando receber um passe mágico que a permitiria enxergar, conversar, talvez incorporar a Preta Velha. Esperava sair dali com uma vovozinha cheia de sabedoria e bons conselhos para acompanhá-la no dia a dia. Não se sentiria mais sozinha, confusa, sem saber o que fazer. E agora só iria agradecer? A médium deve ter percebido sua insatisfação, pois acrescentou: “Você pode oferecer um cafezinho sem açúcar para ela”. 


Já era alguma coisa. No domingo seguinte, Esmeralda comprou um quadrinho de uma Preta Velha na feira. Puxou assunto com a senhora que fabricava o artesanato e tinha jeito de entender dessas coisas, mas foi ignorada. A artesã a deixou falando sozinha enquanto passava o cartão e entregou a sacola com um gesto expeditivo. “Deve ser porque sou branca”, Esmeralda pensou, quase magoada. 


Chegando em casa, pendurou o quadrinho em frente à cama, ao lado do altar onde já figuravam Ganesha, Nossa Senhora, uma coruja, algumas pedras e galhinhos catados em lugares que visitara. Passou um café preto, que colocou numa xícara de ferro branca, após hesitar entre ela e outra mais delicada, de porcelana. “Esta aqui parece coisa de Preto Velho”, decidiu. Ao deitar, olhou para a xicrinha de café sobre um banquinho rústico de madeira em frente à imagem da Preta Velha e sentiu satisfação – “Sou uma macumbeira de verdade”. Mas, passados dois dias, começou a se perguntar o que fazer com a oferenda. E agora? O café não podia ficar lá para sempre, ia ficar ruim, nem entidade devia gostar de café velho.


Decidiu perguntar ao ChatGPT. Para sua surpresa, recebeu uma resposta completa, que começava com Axé, terminava com Saravá e propunha oração, banho de ervas e instruções detalhadas para finalizar o ritual. “Pai ChatGpt”, pensou, irônica. Só faltava isso: agora inteligência artificial dá aconselhamento espiritual. Que mundo é este? Imaginou o ChatGPT propondo, ao final do diálogo: “Se quiser, trago seu amor de volta em dois dias”. Deu risada. Depois começou a se preocupar. Entre entidades astrais e inteligências artificiais, onde fica o homem, ou melhor, a mulher? “Taí um livro de filosofia interessante” - concluiu. "Que outra pessoa o escreva. Prefiro tomar um banho de manjericão e preparar mais um cafezinho para a Preta Velha". Axé! 

 

 

 

Comentários

Jander Minesso disse…
Ri litros na parte do “decidiu perguntar ao ChatGPT”. Coroa lindamente esse ecletismo de fé do texto.
André Ferrer disse…
O Preto Velho é um arquétipo muito potente. Lindo texto.
Zoraya Cesar disse…
Esmeralda tá indo bem! Qd ela menos esperar a Preta Velha dela vai incorporar no ChatGPT e dar algumas respostas inesperadas. Até as entidades se modernizam!

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