MENINÃO >>> Nádia Coldebella
Antes de contar os fatos, preciso esclarecer ao leitor que Seu Libidério e Dona Erotildes encabeçaram uma história de amor digna de Romeu e Julieta: famílias inimigas, brigas e ameaças, fuga de casa e uma filha produzida numa noite tórrida de amor, nascida estrategicamente de sete meses e que recebeu o nome de Delícia, sabe-se lá por quê. Numa época em que era tabu consumir o mel antes da lua, as famílias, em nome da honra, concordaram com a união e o casal ficou grudado por quase 60 anos, num amor de dar inveja a qualquer um. Nunca se ouviu falar de briga, queixa ou insatisfação, só de safadezas.
Inacreditavelmente, Delícia fez questão de contar em detalhes os fatos resumidos acima para a assembleia do velório. Tudo para celebrar o amor parental. Isso foi material de espanto para mim, mas também foi material suficiente para as velhacas recalcadas de plantão praticarem, em meio a lágrimas de crocodilo e fungadas ocas, a arte da fofoca à beira-túmulo. Esta é uma arte secular, disfarçada de afeto. No caso em tela, as maledicentes aproveitaram o mote do discurso para soltar piadinhas e risadinhas sobre a futura solidão noturna da viúva, conhecida no círculo da terceira idade como chapa-quente, "porque esquenta rápido", como afirmou maliciosamente Dona Pierina para a vizinha dias mais tarde.
Parecendo desconectada do resto, Dona Erotildes ficou sentadinha numa cadeira perto do caixão. Quase não se movia. Mantinha a cabeça baixa, coberta com um véu preto, que servia como redoma de proteção. O véu escondia os cabelos curtos e alinhados, que, por causa de um produto milagroso descoberto pela filha na internet, já não eram grisalhos, mas pretos-retumbantes. Ali, sob a luz da vela avermelhada, adquiriam uma coloração acobreada, como um halo sob o véu.
Durante a procissão para o cemitério, a viúva seguiu com o véu na cabeça e o rosto à mostra, agarrando-se à filha e ao genro. Seu rosto parecia uma máscara de gesso: ela não chorava, não piscava, não sorria, não reagia. Desequilibrava-se com facilidade e por isso andava a passos curtos, lentos e titubeantes, mas mantinha a coluna ereta.
Tal elegância e dignidade despertavam o desejo nos varões varonis ainda vivos ali presentes — alguns já senis e outros com mobilidade relativa. Neste ponto, esclareço ser de conhecimento geral a devassidão resguardada da galera de 70+, agora presentes no bota-fora da eternidade. Isso também era de conhecimento de Seu Libidério, atual morto, mas nunca fora um problema, pois ele conhecia a mulher que tinha. O que chegou ao meu conhecimento foi que Seu Libidério foi internado por causa de uma pequena elevação da pressão pouco antes de bater as botas, o que, inequivocamente, é decorrente dos efeitos do olho gordo da velha guarda da impudicícia.
Se Erotildes ouviu os comentários nada benevolentes das decanas do mexerico ou se estava sob a influência desse tal olho gordo dos septuagenários concupiscentes, não se sabe. O fato é que na hora da descida do caixão para o buraco eterno, toda a contenção foi pro ralo e a fachada de viúva digna desmoronou. Ela começou a soluçar, primeiro pianinho, depois mais alto, mais alto, mais alto, até que os soluços se assemelharam ao uivo de um lobo acuado. A filha Delícia, que contraíra “Dos Prazeres” por meio do casamento, tentou acalmar a mãe, mas Erotildes desvencilhou-se dela com a maestria de um ninja, avançou com perícia impensável e parou, quase etérea, com o véu balançando ao vento, à beira da cova.
Ao aproximar-se do caixão, a esposa do falecido causou uma comoção generalizada que teve, como efeito, a suspensão de todo e qualquer som nas cercanias do cemitério. A suspensão durou alguns segundos e foi cortada pelo guincho das maritacas pousadas num fio de luz nas proximidades. Era o prenúncio de eventos catastróficos, que se iniciaram com a viúva jogando os braços para o alto e deixando o véu cair.
— Libidinho, meu amor!!! — O grito veio, estridente, lamuriento, cortante. Ela avançou mais um pouco e entrou na cova. Deitou-se sobre o caixão, tentando agarrar-se, com braços e pernas, ao morto que já tinha partido dois dias antes. Continuou gemendo e gritando, mas os gemidos da anciã tornavam-se cada vez mais guturais, quase lascivos.
Alguns presentes, muito empáticos, choraram e até se desesperaram com ela, outros riram com estranhamento, mas a maioria se assustou. A filha, nesse momento, também perdeu a dignidade e empurrou alguns idosos que se aglomeraram para ver melhor o espetáculo e contar para os parentes depois. Ajudada pelo marido, Delícia também entrou no buraco, agarrando desconexamente a mãe, na tentativa de retirá-la de lá.
Se há alguma prova da lei de Murphy neste mundo, ela foi descoberta nesse enterro. Vendo a sofreguidão da filha, o desespero do genro, a crise nervosa da velha e a aglomeração da audiência da desgraça, um espectador mais consciente pediu ajuda. E minutos depois, ouviu-se o barulho ao longe de uma sirene, que foi crescendo, crescendo, crescendo, até tornar-se insuportável. Era o carro do SAMU, cujo motorista, muito hábil em manobras em condições estranhas, deu um jeito de levar a ambulância até perto da cova. O uó-uó-uó, ali no jardim das almas, parecia a campainha da entrada do purgatório, mas, graças a Deus, foi desligado antes que algum morto acordasse.
Dois homens enormes desceram da parte traseira da ambulância. Primeiro Delícia foi içada do buraco e pousada no chão, ao lado do marido. Depois, os dois homens entraram na cova. Um segurou a velha pelos braços, outro pelas pernas, de forma a libertar o morto. Erotildes foi arrancada da vala e amarrada numa maca, segundo o protocolo, mas só foi contida efetivamente após receber duas injeções calmantes, prescritas para derrubar um elefante. Após a picada, a resistência da viúva foi murchando e, em menos de um minuto, seu ronco soou em meio ao silêncio sepulcral que voltara a imperar no local.
Em respeito ao defunto e à mãe, a filha perdeu completamente a paciência com a confraria da gerontolibidinagem que tentava se aproximar da maca.
— Faça-me o favor, senhor, olha a sua idade! — foi a resposta para o longevo mais rebelde que protestou quando ela pediu para tapar o buraco e mandou todo mundo embora. Apesar de me compadecer da família, não posso deixar de constatar que um enterro como aquele corresponde à fuga da noiva durante o casamento, o que explica o estado de algazarra da velha guarda local.
Na saída, Delícia expressou ao esposo a preocupação com a mãe sozinha na casa imensa. Talvez, com os dois ali e os netos aparecendo de vez em quando, Erotildes esquecesse o desastre do enterro e se animasse mais rapidamente. Bráulio mostrou empatia: sempre se dera bem com a sogra e partia-lhe o coração vê-la sofrer tanto. Decidido, o casal mudou-se de mala e cuia para a casa da viúva.
A verdade, porém, é mais dura, querido leitor. Nos primeiros dias, Erotildes trancou-se no quarto e deixou o pranto correr solto, especialmente à noite, acrescentando, às lágrimas, sons cavernosos iguaizinhos aos do cemitério. A filha pensou tratar-se de uma fase comum aos lutos — ela mesma estava sofrendo — mas a dor da idosa não arrefeceu. Tentaram de tudo: chá, remédio, médico, psicólogo, visita de parente, viagem, pai de santo, nada servia, nada adiantava, nada consolava Dona Erotildes, que, sempre rechonchuda, agora definhava a olhos vistos.
Num desses dias em que a mãe estava prostrada, a filha, inconsolável, ajoelhou-se aos pés da cama.
— Mãe, mãezinha, eu não quero perder a senhora igual perdi meu pai. — Delícia fungou. — Me conta, mãezinha, o que a senhora tem?
A velha, que até então se mantivera em silêncio, compadeceu-se da angústia da filha e soltou, quase num suspiro:
— É saudade, Delicinha. — Sentou-se com esforço. — A cama… — bateu a mão do lado em que o marido dormia — tá muito grande sem seu pai. Eu tenho saudade… — Erotildes levantou as duas mãos, medindo uma distância entre elas enquanto as balançava. — Uma saudade eeeenorme.
A filha não se chocou, mas se surpreendeu. Sabia que o pai e a mãe eram muito ativos, mesmo na velhice. O que não sabia era o tamanho da falta que a mãe sentia. Nos dias que se seguiram, tentou ajudar:
— Mãe, quer que eu pague alguém para a senhora? Mãe, quer casar de novo?
Mas a cada conselho, a velha horrorizava-se. Nunca, jamais, na vida ou na morte, poderia ter outro homem para substituir Seu Libidério. A tristeza agora corria livre, leve e solta, e diante da recusa da viúva em comer, ela passou a frequentar o hospital local com certa regularidade para tomar soro.
Nesta altura dos fatos, caro leitor, é possível a compreensão de uma verdade existencial: o desespero faz a gente buscar alternativas em lugares nunca dantes imaginados. Vendo a mãe tão perto da cova, Delícia não se intimidou e levou Bráulio consigo — lógico, porque vergonha é coisa que se divide.
— Eu queria um coiso — disse, meio sem jeito, para a atendente do sex shop, repetindo o gesto de “saudade” que a mãe fizera.
A atendente olhou, questionadora, para o marido, e Delícia emendou:
— Não é pra mim, minha querida, é para a minha mãe.
A moça não julgou; apenas pensou sobre as coisas que a gente vê neste mundo — e nisso eu concordo com ela: a gente morre e não vê tudo. Ela enfileirou uns dez modelos de tamanhos, cores e formatos diversos sobre o balcão. Delícia tocou aqui e ali com a ponta dos dedos e cara de paisagem e depois apontou para um roxinho com bolinhas rosa-bebê, tradicional, mais ou menos do tamanho da distância entre as mãos da mãe — um tamanho que envergonharia os mais pretenciosos, diga-se de passagem.
— Embrulha pra presente.
Em casa, sem cerimônia, Delícia entregou o pacote para a mãe. Explicou, sem meias palavras, como funcionava, repetindo internamente o mantra que justificava a cara de pau recém-descoberta: questão de vida ou morte, questão de vida ou morte…
Contrariando as expectativas da filha, Dona Erotildes mostrou-se bem receptiva:
— Tá bom, meu amor, vou pensar.
A viúva pensou rápido, caro leitor. O genro também notou, assim que Erotildes colocou o pé para fora do quarto: ela parara de chorar. Tinha até estrela nos olhos. Naquele mesmo dia, após o jantar, sentou-se com a filha esperançosa, para assistir à TV. Quando o relógio bateu nove vezes, a viúva pôs-se agilmente de pé, ereta.
— Precisa de alguma coisa, mãe? — perguntou uma preocupada Delícia.
A velha abriu um sorriso malandro para a filha e apontou para o quarto:
— Sim. Do Meninão.
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