ALUMÍNIO >> ANDRÉ FERRER

Nada mais chato do que Sociologia... Mas, naquela aula, bastou um segundo de atenção, uma chance para o professor, um cisco de lucidez, para que as estruturas de Armando estremecessem.

O rapaz escutou a primeira palavra por acidente, levantou a cabeça e foi violentamente tirado da zoeira dos colegas bem como das próprias ruminações. Quando a frase ecoou na sala de aula, os olhos dele brilharam. Foi tomado de assalto. Armando jamais levara semelhante tranco.

O citado fora Platão: Nunca espere por uma crise para descobrir o que é importante em sua vida. O professor respirou, voltou à reforma agrária, tema que explicava antes de dar um exemplo.

Quando o sinal tocou, meia hora depois da bomba, o rapaz ainda estava pasmo. Suas crises apenas diziam uma coisa: é importante sair inteiro de uma crise para receber a próxima crise. O rosário de crises, para Armando, era interminável.

IMAGEM: ChatGPT


Enquanto se dirigia ao pátio, o rapaz pensava. Cruzava o grande espaço aberto e pensava. Pensava quando tirou o cadeado da bicicleta. Pensava de um jeito sem precedentes.

“Nunca espere por uma crise.” Ora! Com a quantidade de crises que eu tenho, nem dá para esperar.

De repente, houve um barulho e Amando olhou para trás. Existe gente ainda mais lenta do que eu, pensou. O casal se apressou. Desapareceu no portão semifechado.

À noite, aquele pátio era mesmo aterrador. Frequentara a escola no período da manhã. Tivera que mudar para o noturno justamente por causa de uma das suas crises: a morte da sua mãe. Como o pai já tinha se mandado há anos, Armando morava com a avó.

— Preciso comprar comida — murmurou. — A velha está sem comer desde a hora do almoço.

Jogou a mochila nas costas , calcou o pé esquerdo no pedal e subiu na bicicleta.

Depois do portão, havia uma roda de alunos, a caixinha de som no último volume, funk e dança. O rapaz freou a bicicleta, pediu licença. Um conhecido sinalizou.

— Hoje, não. Eu não posso — disse Armando.

Começou a pedalar.

Num trecho em declive, conteve a velocidade por causa do frio. A ventania batia em seus lábios, que estavam ressecados. Havia frio por todo o seu corpo, até mesmo no peito e na barriga. Sua mão congelou quando ele ajeitou a mochila nas costas. Vestia uma blusa por cima da camiseta, mas aquilo era inútil.

Lá embaixo, Armando avistou um catador de sucata da velha guarda, que se chamava Barnabé. Seu gorro estava enterrado até os olhos e muito pouco do seu corpo era visível por causa da grande quantidade de roupas. Nos pés, as chineletas apoiavam os calcanhares rachados como de costume. Barnabé puxou o carrinho. Entrou numa rua estreita e nos fundos de um bar. O sortimento de material devia ser grande lá atrás.

Barnabé dividia espaço com o rapaz de vez em quando. Armando não se importava. Não como os outros catadores, que expulsavam o velho porque eram territorialistas.

De repente, Armando se lembrou daquela tarde. O homem para quem ele vendia a sucata tinha uma nova regra: daquele dia em diante, só compraria alumínio.

Armando fora pego de surpresa e a sua carga de papelão e plástico encalhou.Por isso, estava sem dinheiro. O jantar se restringira à sopa rala da escola. Sua avó aguardava em casa. Faminta numa noite fria.

Depois do vale, uma subida começou a castigar o rapaz. A única coisa de que eu não posso me dar ao luxo é esperar por uma crise, pensou ele. No seu caso, as crises vêm uma atrás da outra. São como as ondas de uma praia brava.

Lá em cima, o letreiro do posto de combustível brilhava e o rapaz fez uma pergunta a si mesmo: E se tivesse dinheiro? É claro que compraria algo para a avó, um salgado, um chocolate, qualquer coisa, e guardaria o troco para o outro dia. Pena que ele não pudesse levar um pouco daquela sopa da escola para casa. Estava frio.

Quando chegou à quadra mais alta, parou para descansar e observar o posto de combustível. Do outro lado da rua, as bombas acesas, a conveniência lotada de atrativos, o frentista, que conversava com o vigia.

— Vou ao banheiro — disse o homem.

— A porta está aberta — o frentista informou.

Logo, outro “e se” nasceu na cabeça de Armando. E se ele roubasse algo lá dentro?

Não. Aquilo era um efeito do frio e do cansaço. Eu não sou assim, pensou. Aprendi outras coisas com a minha mãe. Tudo o que a minha avó ensina é diferente disso. Ele ergueu a perna direita. A bolsa tremia nas costas de Armando quando ele começou a pedalar.

Passado o susto, a sofreguidão, aquela ilusão de fuga, Armando levantou a cabeça e viu que cruzava ooutro bairro, território de abastados, uma concessionária, um centro de estética, o shopping da moda. E se morasse num daqueles prédios? Absurdo. Até achava ruim uma coisa dessas! Era vergonhoso. Ter dó de si mesmo era o fim da picada. Sua avó ensinava-o a nunca fazer isso.

Trabalho duro pra caramba, pensou.

À pouca distância, um senhor se apoiava numa árvore e o rapaz freou, pensou que o velho fosse atravessar a rua. Um carro passou. O velho caíu aos pés da árvore, ainda na calçada, e Armando teve a impressão de que estivesse desacordado.

Armando jogou a bicicleta e a bolsa ao pé da árvore e se aproximou do idoso, que estava acordado. Apenas naquele momento, o rapaz notou que o corpo estendido vestia um pijama. O homem resmungou e apontou com o dedo.

— Moro ali.

— No prédio!

Então, o velho balançou a cabeça para confirmar.

— O senhor pode ficar em pé?

— Vou tentar. Ajude-me, por favor.

— Sim.

— Tive uma vertigem.

O homem se apoiou em Armando e ficou em pé. Eles atravessaram a rua quando ficou seguro.

Na frente do prédio, o velho apertou o interfone da casa e uma mulher atendeu ao chamado.

— É o senhor que mora aí. Caíu quando eu passei.

— Meu Deus!

Três minutos depois, um homem apareceu junto com outro de uniforme azul. Eles verificaram as condições do velho e o morador do prédio encarou o porteiro.

— Você viu quando ele saíu?

— Não — o porteiro respondeu e foi para o seu posto.

— É o meu pai — disse o homem. — Ele tem um sério problema, por isso, fugiu.

— Sinto muito — fez Armando.

— Obrigado por trazê-lo.

— De nada.

— Venha — disse o homem do prédio. — Pegue isto aqui.

Cinquenta reais, pensou Armando.

— Obrigado.

O rapaz não podia se dar ao luxo de recusar.

Armando comprou um lanche e guardou o troco numa gaveta quando chegou em casa. Tirou a blusa, chacoalhou e estendeu no espaldar de uma cadeira da cozinha. Naquele horário, a avó ficava na sala.

— Trouxe um lanche.

— Obrigada.

— É de queijo e de frango.

— Bom... Mas e o seu?

— Aqui.

Armando mostrou a barriga quase vazia para a avó, que riu.

— Então, o trabalho rendeu hoje?

— Sim.

— Isso é bom.

Amanhã, terei que encontrar bastante alumínio.

Enquanto a velha comia, Armando levou a bolsa até a cozinha. Estava frio. Ele vestiu a blusa e começou a fazer as atividades da escola.

Nunca fazia os deveres de casa, mas ficou curioso: e se houvesse outra bomba de Platão na leitura e no questionário? Queria sentir aquilo de novo, a sacudida do conhecimento, a sensação de sair de uma caverna, o prazer inédito que vinha depois. Algo tinha mudado nele.

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