CONSPIRAÇÕES >> André Ferrer
Ricardo considerava-se curado, mas continuava a fazer aquilo compulsivamente. Para ele, sempre havia mensagens ocultas nas entrelinhas do convívio, atrás das conversas do cotidiano, nos porões da gentileza. Das duas, uma: ou o seu TOC deixara restos importantes ou, talvez, Ricardo estivesse enganado sobre a cura.
Naquele dia, entrou em ação por causa do suporte prata para xampus, uma entrega esperada, quase nove da manhã. Quando abriu a porta, viu que o entregador ostentava uma tatuagem no rosto, um bigodinho fino, uma linha... Um código em si.
— O elevador está quebrado — disse ele com os pulmões na boca.
— Engraçado... Ontem estava funcionando.
Ricardo levantou as sobrancelhas porque, decerto, alguém sabotara o elevador.
— Pode assinar?
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| IMAGEM: Gemini |
Com certeza, pensou Ricardo. Apanhou a prancheta e se preparou... Vejo caroço nesse angu. Talvez, um assalto no prédio! Um comparsa no corredor.
O entregador foi embora. Quando Ricardo se recuperou, abriu o pacote e achou um porta sabonete azul. Tudo bem. Vai ver o suporte prata para xampu estivesse esgotado. Além do mais, a cor combinava com a escova da...
Smurfette!, pensou.
Por onde andaria a Smurfette? Apanhou o telefone e agachou-se a fim de verificar se a cadela estava no esconderijo habitual.
— Posso ajudar? — a dona do pet shower atendeu.
— Tenho um banho agendado.
— Nome do pet.
— Smurfette.
— Era para esta manhã!
— Era?
— Por favor, aguarde.
Mulher seca, pensou. Ela sabe quem sou — o pai da Smurfette —, conhece a minha voz e já é íntima da minha cadela. Então, o que houve? Infecção de ouvido, surto de carrapatos, cinomose?
Em menos de um minuto, ela voltou. Foi rápida de fato.
— Sinto muito. Estamos remarcando para essa tarde. Íamos ligar para o senhor.
Eu sabia. Vou trocar de pet shower. Há vários na cidade.
— Senhor? Pode ser ao meio-dia e quarenta?
— Não!
Desligou.
Naquela quarta-feira, a empresa em que trabalhava seria dedetizada. Ricardo fora dispensado por causa da sua alergia. Então, sentou-se no sofá e procurou o pet shower ideal para a sua Smurfette.
— Franja Frozen! — disse ele na primeira tentativa. Pensou: É um brinde, mas não combina com a personalidade dela. ‘Tá certo. É de graça... Pensando bem, é suspeito.
A segunda pet shower ofereceu uma tal de Margapet, lançamento no ramo das loções antipulgas de ação prolongada.
— Que aroma?
— Rosa e margarida.
— Sou alérgico.
— Nada a ver. É a cachorra que vai usar.
— Cadela. Cachorra é ofensivo.
A mulher desligou.
Com a terceira pet shower, estava tudo bem. Nada de margaridas ou palavreado chulo. Uns lacinhos alusivos à Páscoa, a próxima data comemorativa. Horário vago para a manhã.
Como a empresa ficava no bairro vizinho, Ricardo chegou cedo. A sala de espera tinha música e revistas. Ninguém para se decifrar.
Quase uma hora depois, um animal irreconhecível entrou no bunker das mães e pais de pet. Era uma cadela estranha, mas que estava com a coleira da Smurfette.
— O que acha?
— Corte ursinho... Eu falei: corte ursinho.
— Oh! Deve ter sido um equívoco.
— Foi.
— Senhor. Peço desculpas... Não vamos cobrar. Este corte está muito em moda.
— Como se chama?
— Franja Frozen.
— Tudo bem.
Ricardo foi para casa e preparou um almoço rápido. Poderia comer na rua, mas precisava proteger a Smurfette, que estava impaciente e desconfiada. Para poupá-la — pelo menos, nas horas iniciais —, Ricardo tirou o espelho do alcance.
Às treze e quarenta da tarde, ele abriu a torneira da cozinha e pensou em como o dia passou rápido... Ou seja, sentiu tédio, depressão, o velho complô tão comum em dias de folga. Logo depois da louça, ele saíu a fim de adiantar alguns afazeres bem como repor uma aula de idioma.
Iniciou, então, na rua onde ficava a Sistemas & Soluções. Conforme a tarde avançou, ele foi refinando a sua arte com a ajuda do técnico em TI, da professora de Inglês e da moça da seção de congelados.
— Senha fácil — disse ele ao homem dos terabytes. — Eu descobri, digitei e entrei.
Na escola: — Don’t you mind the big cat behind your only neuron?
E depois: — O frango voou e pousou no ninho.
Estava mesmo atacado. Foram belas descobertas, uma a cada conversa... Muita coisa de fato. Com certeza, ele esqueceria os detalhes das conspirações, o mecanismo ardiloso de cada uma delas, mas o brilho, a emoção do flagrante, permaneceria.



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