AS PONTES >> André Ferrer

Fazia tempo que o feirante não aparecia. Naquela manhã, ele acelerou a sua moto atrás de Francisco, que se dirigia ao ponto, à beira da estrada, onde planejava cortar um pouco de capim. A moto passou e a carreta que ela arrastava estremeceu quando o piloto freou diante de dois vizinhos. Os homens estavam sentados à beira da estrada. Francisco chegou.

— Faz tempo, já, que você não aparece — disse um dos vizinhos.

— É fora de mão — fez o feirante. — Preciso contornar o rio. Fica longe.

— Tenho milho, fubá, abóboras... Para vender.

— Eu também estava esperando você — fez o outro vizinho.

— Tenho leite e mandioca — disse Francisco. Todos olharam para ele daquele jeito. Sempre o faziam sentir-se um estranho.

— Vou até o final da estrada — fez o motoqueiro. — Logo, eu volto e a gente negocia. Uma ponte facilitaria muito aqui. Ah, como facilitaria!

O feirante engatou a moto e saiu. Atrás dele uma nuvem de poeira.

— Bom dia vizinhos — disse Francisco.

Os dois homens fizeram um gesto com a cabeça e continuaram a conversar. Francisco prosseguiu a fim de colher o seu maço de capim.

Foi naquele dia que Francisco teve a ideia de construir a ponte. Sabia trabalhar a madeira. Talvez, tão bem quanto trabalhava o rebanho e a roça. Contudo, havia um problema: o ponto ideal para a construção da ponte ficava diante da casa da viúva Paranhos.

Ela costumava lavar roupas ali e, certa vez, encontrou Francisco deitado numa pedra. Minutos depois, ele acordou. Sua cabeça bateu na garrafa de cachaça, que tombou e rolou sobre a laje até cair na água. Quando ergueu a cabeça, era justo a viúva Paranhos que olhava de cima para baixo. Para Francisco, o olhar da própria justiça.

Apesar da ruminação, Francisco foi até a sua velha oficina. Fazia anos que deixara de trabalhar. Plantava o suficiente. Vivia o mínimo possível desde que se tornara só. Havia poeira e teias de aranha por toda parte. Então, ele começou a reunir as suas ferramentas de carpintaria.

Em pouco mais de uma hora, a sua velha caixa de ferramentas estava ocupada novamente. Faltava, contudo, o serrote. Aonde, diabos, foi parar o serrote? pensou Francisco.

Pxfuel - domínio público
Faz anos que abandonei este mundo. Não é à toa que ninguém é capaz de acreditar em mim. Ainda bem que eu tenho crédito no empório. Basta pagar aquela bebida que mandei marcar no mês passado. Então, eu poderei comprar um serrote novo.

Entusiasmado, Francisco foi até o rio. Ficou escondido. Não queria incomodar a viúva Paranhos com a sua presença. Imaginou, visualizou a moto do feirante, estrondosa, que cruzava a ponte, fez medições com os olhos. Depois, ele voltou e teve a ideia de pedir o material para a comunidade. Quando estava em frente da sua chácara, encontrou alguém. O sujeito vinha naquela direção. Carregava um frango que tinha os pés atados por uma palha de milho. Era um dos dois homens que, algumas horas atrás, ele havia encontrado na estrada.

— Olá.

— Oi.

— Queria perguntar uma coisa.

— Olha, se for dinheiro... Eu não tenho.

— Não. Não. Por favor. Não.

— Tudo bem. O que foi seu Chico?

— Estive pensando. Se o pessoal do bairro doasse material para uma ponte, eu construiria. Sim. Construiria uma ponte. O feirante, você sabe, nem passa mais por aqui! Facilitaria muito e para todos nós.

— E a mão de obra?

— Eu faço. Basta o material.

— Sozinho?

— Por que não?

— O senhor ainda consegue? Digo... Por causa da idade. Sozinho?

— Consigo.

— Olha, seu Chico... Eu não sei. Eu não sei.

— Facilitaria muito e para todos.

— Passe lá em casa amanhã. Tudo bem?

— Sim.

Depois de dois dias, o ruminar de Francisco apaziguou-se. Tinha se acostumado com a ideia de voltar àquele ponto do rio. Suas ferramentas eram suficientes para a construção. Quanto à madeira, os moradores compreenderiam o caráter comunitário da ponte e, apesar de tudo, ajudariam. Apesar dos muxoxos e da indiferença. Francisco trabalharia, enfim, a partir do dia seguinte.

Às nove e meia da manhã, ele já tinha conversado com três vizinhos. Apesar da incredulidade, eles doaram inúmeras peças de madeira. Um deles queria ver, antes, algum progresso para só depois doar cinco lindos caibros que haviam sobrado de uma reforma.

O dono do empório também contribuiu. Como Francisco tinha saldado os três litros de cachaça que devia — e comprado à vista, naquela manhã, um serrote —, o homem doou um maço de pregos ao construtor. Da mesma forma que alguns fregueses, em frente ao empório, um dos vizinhos ficou estarrecido. O velho Francisco estava limpo e sóbrio. Não recusou uma carona assim que o velho pediu.

— Fui comprar um serrote.

— Estou vendo.

— Perdi o meu.

O silêncio de sempre. O vizinho estalou a língua nos dentes enquanto chicoteava o cavalo. Riu.

— Seu Chico, responda uma coisa.

— Sim.

— Para que o senhor precisa de um serrote nesta altura da vida?

— Sou carpinteiro.

— Ainda é?

— Sim. Eu vou construir uma ponte. Vai facilitar a locomoção de todos. Aquele feirante, por exemplo, reclama tanto! Vai facilitar para todos.

— Uma ponte. Pago para ver. Por essa, eu pago.

Riu.

Francisco juntou o novo serrote às antigas ferramentas logo que chegou. Gastou o resto do dia com o transporte da madeira — sempre sob os olhares incrédulos dos doadores — e, ao cair da noite, ainda fazia medições. A luz da viúva Paranhos escorria, sobre o gramado, até a beira do rio. Quando escureceu, Francisco sentou-se num caibro e sentiu as costas. Estava fora de forma.

No segundo dia, Francisco chegou mais tarde ao trabalho. A viúva Paranhos lavava roupas na beira do rio, o que deixou o homem envergonhado.

— Bom dia — fez o velho.

A mulher levantou a cabeça, enxugou a testa e bateu um pano na pedra. Demorou até responder. Francisco entendia. Quando eram amigos — antes da bebida e das ferramentas abandonadas —, ele precisava esperar, muitas vezes, que ela se recompusesse depois de pensar seriamente. A viúva Paranhos pensava o necessário. Jamais respondia sem refletir o suficiente.

— Bom dia.

Depois do terceiro dia, a construção evoluiu bastante. Francisco soube manter o ritmo apesar do cansaço e do tempo ruim. Uma chuva, iniciada na noite do segundo dia, persistia tanto quanto o construtor.

No quarto dia, também chovia e ventava. Francisco estava feliz. Faltava pouco para terminar. Apenas as proteções laterais precisavam ser pregadas nos seus devidos lugares. Então, ele começou a trabalhar bem cedo. A chuva parecia incessante. O nível do rio duplicou e, ao meio-dia, Francisco pregou reforços em ambas as margens. Ele continuou, sob a chuva, instalando as proteções laterais.

Às quatro horas da tarde, a chuva aumentou ainda mais — bem como a ventania. O nível do rio chegou à altura da ponte, que sacudia sem parar. Francisco pregou a última ripa. Segurava-se contra o vento. A chuva castigava o rosto do velho. O rio cobria os seus pés.

— Não — disse ele. De repente, a água já estava nos seus joelhos! Então, a ponte estalou. Francisco viu quando a metade da construção desapareceu rio abaixo. Ele saltou no barranco e agarrou-se. Foi seguido pela água até cair, dois metros acima, num local seguro.

Sentado numa poça de água, Francisco assistiu à destruição da outra metade da ponte. A proteção lateral rachou. Pendurou-se por alguns segundos. Rodou rapidamente. Francisco limpou a terra sobre os olhos.

— Não — disse ele.

Uma das pilastras ficou, em riste, bem no meio da corrente. A última peça da ponte a resistir. Francisco ficou sentado no meio da lama. A água chegava aos seus tornozelos. Olhava o caibro, prestes a se soltar, que oscilava sob a força da água. Parecia o mastro de uma bandeira perdida.

Quando ergueu a cabeça, notou que alguém se aproximava. Do meio do torvelinho esbranquiçado da chuva, ela se revelou. A mulher estava sob um lençol estampado, que batia, ao vento, preso ao redor da cabeça. Então, a viúva Paranhos estendeu um dos braços. Moveu os dedos da mão. Chamava.

— Ora, você tentou. É o que importa. Quase conseguiu. Agora, venha. Saia da chuva.

— Obrigado — disse Francisco. Sentiu-se aconchegado sob o lençol que, agora, ele ajudava a segurar.

A fase brutal da chuva passava. Logo, o estrondo do aguaceiro foi substituído pelo murmúrio de uma chuva leve sobre a vegetação. As gotas cadentes nas poças e as pequenas bicas murmurantes representavam uma espécie de rescaldo.

Naquele ínterim, a viúva Paranhos conduziu Francisco até a casa dela e abrigou o homem, que se enxugou numa toalha macia. Depois, eles beberam café e comeram broa de milho em silêncio. Enquanto a chuva se transformava num fresco mormaço, com todos aqueles ruídos trocados pelo canto dos bichos, os vizinhos experimentaram uma familiaridade que, há pelo menos uma década, eles tinham perdido.

 

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Bom dia, André!
Que delícia começar meu dia com um texto tão sensível!

Fiquei presa na história, angustiada qdo a ponte caiu, imaginando que esse homem havia chegado numa encruzilhada: tenta de novo ou abandona tudo e volta a beber. Mas aí vc vem e mostra que ele construiu uma nova ponte, uma que não se vê, mas que o conecta com os amigos. E por causa disso ele teve onde repousar a cabeça na hora da tristeza... Sensacional!

Como eu disse: um texto muito, muito sensível!
Ana Raja disse…
Que texto recheado de significados! Lindo.
Zoraya Cesar disse…
Meu Deus, que crõnica maravilhosa! me deu uma angústia danada, mas acompanhei linha por linha e nao podia ficar mais feliz! Muito obrigada por esse pedaço de sensibilidade e amorosidade!
Albir disse…
Muito bom, André! Construiu-se o carpinteiro.

Postagens mais visitadas