ATÉ QUE A MORTE NOS REÚNA >> Albir José Inácio da Silva

 

Com a voz mais suave que conseguiu, e os dedos experientes na jugular de Glória, Tânia repetiu:

 

- Você precisa ser forte, Beto, ela não está mais entre nós.

 

Chocado e incrédulo, Roberto olhava o rosto de anjo da esposa, que parecia dormir com um quase sorriso de quem estivesse num sonho bom.

 

Ele passou a noite no quarto das crianças porque chegou tarde de viagem, e a amiga velava o sono de sua esposa, que teve uma crise antes de dormir. Pela manhã foi acordado por Tânia para ouvir a pior notícia de sua vida.

 

O começo da história destes três personagens, leitor, você vai reconhecer de cenas clássicas já recontadas em páginas e telas sobre a Tijuca do Rio de Janeiro.

 

Cresceram e brincaram na mesma rua, foram juntos à escola, frequentaram cinemas na Praça Saens Peña e matinês no Tijuca Tênis Club. No ensino médio separaram-se, como devia ser na Tijuca dos anos setenta: meninas para o magistério no Instituto de Educação e menino para a macheza do Colégio Militar.

 

Já ia me esquecendo de dizer que, desde a infância, conviviam os três com alguma confusão sentimental. As meninas silenciavam sobre o tema delicado, mas sabiam da paixão que cada uma nutria pelo garoto que agora desfilava engalanado.

 

Esse silêncio mantinha inseparáveis as normalistas. Inseparáveis, apesar de diferentes. Maria da Glória era tranquilidade, resignação, consenso, e Tânia, impulsividade, determinação e atitude.

 

Roberto prolongou quanto pôde aquela indefinição. Gostava de se saber disputado em segredo. Alimentava discreta e separadamente as esperanças de ambas e se divertia confidenciando e pedindo sigilo aos colegas.

  

A impaciente Tânia achou que era hora de clarear aquela situação. Achou também que se saísse na frente tinha mais chance de ganhar. Desvencilhou-se de Glória uma tarde e apareceu na saída do Colégio Militar.

 

O gesto não rendeu o esperado, pelo contrário, Roberto achou ousadia demais para uma garota. Ela deveria ter esperado que ele tomasse a iniciativa. Alguns meses depois, ele se declarou para Maria da Glória, segundo ele, mais recatada.

 

Roberto passou a esperar Maria da Glória na porta da escola. As amigas continuaram caladas sobre isso. A coragem de Tânia em dizer ao menino que gostava dele faltou na hora de confrontar a sólida amizade.

 

Por algum tempo ela arranjou pretextos para não acompanhar os dois e seguia em outra direção. Acabou desgostando do magistério e foi cursar enfermagem. Isso a afastou da amiga de toda a vida, o que trouxe muito sofrimento para as duas.

 

Roberto também desgostou da vida militar e, quando terminou o colégio, foi cursar engenharia. Más línguas disseram que ele escolheu Glória porque o pai dela tinha uma firma de engenharia.

 

Anos depois casaram-se com pomba e circunstância como convém a um tijucano. Apesar de convidada, Tânia não foi ao casamento, inventou uma doença, tomou um porre de vodca com fel e comeu uma caixa de chocolates.

 

Roberto terminou a faculdade e trabalhava com o próspero sogro. As reuniões de família eram no estilo “Oh, happy day!” até que, na gravidez do primeiro filho, surgiram os problemas no coração de Maria da Glória.

 

Mas não foi só isso. O sogro faliu, e Roberto ficou desempregado. As consultas do cardiologista eram uma fortuna, e as receitas médicas, astronômicas. Acabaram-se os anos dourados.

 

(Continua em 15 dias)

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Três vidas que se enredam num enredo digno de um folhetim dos anos áureos. Aguardo ansiosamente pelo desfecho...
Jander disse…
Parece que o jogo virou, hein?
Bela construção do cenário que leva até a virada.
Zoraya Cesar disse…
Essa treta promete, Dom Albir, promete muito! Ansiosa e roendo as unhas pelo próximo capítulo. (agora de boas, eu não confio na natureza humana. Maria da Glória foi assassinada pela amiga enfermeira, ora se foi!. e eu to doida pra saber como ela armou tudo e se vai se dar bem no final!)
Albir disse…
Obrigado, Nádia, Jander e Zoraya!

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