PARNASO DE ALEM TUMULO (1/2) [8068] >> Glauco Mattoso

 

Nasci com glaucoma, como Ray Charles, mas não perdi a visão na infancia. O olho direito aguentou até os vinte annos e o esquerdo até os quarenta. Meu pae era kardecista e insistia para que eu me tornasse espirita, mas só uma vez me submetti a uma cirurgia espiritual, aos vinte e trez annos, que, si não reverteu a cegueira do olho direito, paresce ter addiado a perda total, o que me levou a estudar o espiritismo, ao menos litterariamente. Fiquei tão impressionado com a obra de Chico Xavier que, certa vez, commentei: {Não sou de mesa branca nem de terreiro, mas sou bruxo, e "que las hay, las hay"... Portanto, não poderia deixar de registrar alguns exemplos tirados do famoso livro Parnaso de alem tumulo (1932), creditado à mediunidade de Chico Xavier. É claro que não posso concordar que um Bocage, o maior auctor de sonnettos sacanas em língua portugueza, tenha-se arrependido e, no celebre sonnetto dictado na agonia final, feche com a chave "Rasga meus versos, crê na eternidade!": ora, para crer na eternidade não é preciso rasgar nada, nem deixar de fazer versos! Pelo contrario: é mais comfortador crear sabendo que a obra pode perdurar indefinidamente. Acho, pois, muito extranho que não se publiquem sonnettos sacanas psychographados (siquer no caso de Emilio de Menezes), o que me cheira a censura doutrinaria. Pessoalmente, depois de morto pretendo continuar a compor meus versos desboccados, e quero transmittil-os para o lado de ca sem necessidade dum "nihil obstat". Mas isso tem tempo, ja que não espero morrer tão cedo. [...] Chico Xavier é mesmo phenomenal. Nem fallo do resto: basta-me a façanha de psychographar sonnettistas de differentes estylos e estheticas, arremedando o dominio que cada auctor tinha das normas de versificação (e dos mechanismos de transgressão dessas normas), embora elle proprio, o Chico, fosse tão joven e tão despreparado nas lettras. Mesmo que estivesse clandestinamente assessorado por uma equipe de academicos (hypothese que, por si, ja seria absurda), teria que comptar com especialistas em cada eschola poetica, cuja vaidade os impediria de guardar segredo sobre tal assessoria, não lhes paresce?} Fiz varios poemas psychographicamente estylizados no livro Inspiritismo, mas hoje quero revisitar o poema abbaixo, do livro DESAUCTORAES. 
 
 
Parnaso de alem tumulo (1/2) [8068] 
 
(1) 
{Estou arrepiada, Glauco! Juro, 
eu nunca tinha lido um livro tão 
phantastico! Você crê nisso, Glau? 
Alli cada poema tem a cara 
perfeita do poeta quando vivo! 
O Chico não seria assim tão culto 
a poncto de imitar tantos auctores 
de estylos differentes! Addemais, 
tão joven era, Glauco! Supponhamos 
que fosse assessorado por alguem 
lettrado... Um dia aquillo vazaria! 
Não, Glauco, o medium era foda! Foda! 
Faltou, na certa, alguma putaria, 
mas pode-se entender essa moral 
da purificação, não é, querido? 
Mas digo-lhe: fiquei arrepiada!} 
 
(2) 
-- Querida amiga, agora sou seguro 
daquillo que está alli. Não sou christão 
devoto, ou kardecista, mas num grau 
qualquer eu nisso creio, pois a tara 
tambem explicação tem, pelo crivo 
espirita. A cegueira, nesse culto, 
faz parte da missão, tal qual as dores 
que sinto na velhice, si meus ais 
causarem gozo sadico aos meus amos, 
ou seja, a meus leitores. Ao Alem 
eu devo o que escrevi, da poesia 
à prosa, por aquillo que incommoda 
pudores puritanos. Não seria, 
porem, psychographia a bacchanal 
que muitos me imputaram, no sentido 
de culpa, de peccado. Não, qual nada! 
 
 
 
Glauco Mattoso é paulistano de 1951. Nos annos 1970 editou o poezine Jornal dobrabil e destaccou-se entre os poetas "marginaes". Compoz mais de dez mil poemas ou de septe mil sonnettos e assignou mais de cem livros de poesia, trez romances (um delles em verso), trez volumes de contos, alem de chronicas, ensaios, um tractado de versificação e um diccionario orthographico, este systematizando sua reacção esthetica às reformas cacophoneticas soffridas pelo portuguez escripto. Mattoso perdeu a visão nos annos 1990 devido a um glaucoma congenito que lhe ensejou o pseudonymo litterario. Sua producção mais volumosa occorre appós a cegueira, graças a um computador fallante. Seus ebooks saem pelo sello Casa de Ferreiro e seu blog traz mais informação. 
 
* Uma parceria com O bule! http://www.obule.com.br

Comentários

Albir disse…
Bem-vindo ao Crônica, Glauco! Texto forte e desafiador!

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