Luana >> Alfonsina Salomão


Luana sempre fora sonhadora. Criança, imaginava mundos encantados atrás das cachoeiras, povoados por unicórnios, cavalos alados e borboletas coloridas. Suspirava ao ouvir contos de princesas em apuros, salvas por príncipes em cavalos brancos.
 

Educada por irmãs salesianas, crescera ouvindo discursos sobre o amor de Deus e Nossa Senhora. As freiras também lhe inculcavam histórias de santas repletas de abnegação, como Laura de Vicunha, a menina morta aos treze anos cuja imagem adornava os corredores do colégio. Admirando o olhar forte e o meio-sorriso da santinha, que posava singela num uniforme branco e azul claro, Luana se perguntava, preocupada: estarei longe de ser como ela?

Quando, ao sair da escola, Luana foi cortejada por Gaspar, um jovem médico que muito agradava seus pais, ela se disse que saberia amá-lo e honrá-lo como se deve. Satisfeita, portou a grinalda e o vestido de noiva, ambos alvíssimos, com majestade. No leito conjugal, porém, não encontrou nenhum prazer. Cerrava olhos e dentes enquanto o marido fazia o que precisava e agradecia a Deus quando aquilo acabava. Mas ainda pior eram os dias, que se arrastavam aborrecidos.

Moravam em uma cidadezinha do interior de Minas Gerais onde pouco havia a se fazer. Luana redecorou o interior da casa, despediu e contratou empregadas, endividou-se com joias e roupas de marca, sem encontrar nenhum apaziguamento. Foi então que conheceu Inácio, filho de um coronel do café e proprietário de muitos hectares de terra na região. O belo Inácio sabia tratar as damas. Mesclava interesse explícito e uma pitada de desdém com tanto apreço que conquistou o coração da recatada Luana. Foi na sua cama que nossa sonhadora enfim conheceu os céus.

Ela vivia o paraíso terrestre quando Gaspar faleceu, vítima de uma gripe avassaladora. Apesar de sinceramente triste pela morte do marido, sentiu o peito bater forte com a expectativa de ser todinha do amante.  Luana já se via subindo ao altar pela segunda vez, dizendo sim repetidas vezes ao amado. Sua vida seria plena, passariam dias e noites amando-se no casarão colonial, em meio às plantações de café,  em todos os lugares aonde quisessem, sem terem que se esconder das vistas dos outros. Cheia destas expectativas, a jovem viúva correu para os braços de Inácio.

Ele, porém, não sentiu nenhum remorso ao dizer que não a queria mais. Agora que Luana estava desimpedida, perdera o tesão. A raposa já tinha outra presa na mira, uma virgem de quinze anos que estava de matrimônio marcado com um primo seu. Ajoelhada diante de Inácio, Luana gemia, chorava, se humilhava. Dizia tudo o que lhe passava pela cabeça para convencê-lo de que era a mulher da sua vida. Ele a fitava sem a ver, criando em sua mente estratégias para deflorar a moçoila antes do matrimônio. 

De volta ao lar, Luana concluiu que a vida não valia a pena ser vivida. Colocou o vestido de casamento, deitou-se sobre os lençóis impecavelmente esticados com um buquê de flores brancas nas mãos e esperou o veneno fazer efeito. Morreu com o semblante sereno, uma verdadeira santa. Ao menos foi o que todos disseram no enterro, enquanto colocavam o caixão terra adentro, ao lado do túmulo de Gaspar. 

Comentários

Jander disse…
Um socão no estômago, bem dado e muito bem escrito.
Anônimo disse…
O que mais cega é a "santidade". Lindo texto. André Ferrer aqui.
Nadia Coldebella disse…
Que reviravolta! Que história sensacional!
Já reparou, Alfonsina, que em geral as histórias de Felizes Para Sempre terminam no dia do casamento? Ngm fala do que vem depois. Muito obrigada por descortinar esse véu.
Agora, sua personagem é tão bem escrita que merece uma história detalhada só pra ela. Rende um romance!
Grande abraço.
Zoraya Cesar disse…
pobre Luana. Mais um vítima dos contos de fadas e dos romances 'proibidos para moças de família'. Manter a mulher na ingenuidade do que é amor ou desejo, digo, da diferença entre ser amada ou desejada foi um crime na humanidade. Qtas Luanas por aí, que nao conseguiram viver além do sonho desfeito. Maravilhosa história!
Albir disse…
Essas suas personagens são admiráveis, Alfonsina! Vão na ferida, desmascaram, enfrentam e desvelam o que talvez se queira escondido. Brilhante texto!

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