DIÁRIO DE MIM>> Carla Dias


Acordei sabendo de algumas coisas que não estavam em mim no dia anterior. Foi extraordinário, porque eu nem fazia ideia, até então, da possibilidade de usar a voz de outra pessoa para aprender a minha. 

Eu sempre fui desafinada, não apenas na voz. 

Quando estava sozinha, acreditava – por escolha – saber cantar, mesmo ciente de que jamais cantaria em público. Aprendi assim que nem tudo precisa ser público. E foi por ter acordado com algo em mim diferente do quem-eu que eu conhecia. E havia prazer em tentar, por isso acolhi a consciência: ser esquisita não é ruim...

E que não saberia mais viver na ausência de música.

Quando dei de dançar, fim de tarde, na sala de casa, minhas pernas bambearam enquanto eu dizia, por cima do por outro dito, o que eu precisava escutar e ninguém me dizia. Foi minha primeira catarse de estagiária do desejo de morar em canções e em mim.

Acordei um dia desengasgando a garantia de distância e me aproximei. E apesar de não ter nascido para os rompantes provedores da verbalização de declarações explosivas, aprendi a fazê-lo de outro jeito, um que se tornou meu.

Eu nem fazia ideia de que podia ter jeito meu... só meu.

É que um dia acordei verdadeira, de reconhecer cada suspiro desviador e oferecedor de apreço, o retesar dos músculos em momento propício para mandar um e outro para o inferno, e, claro, tentar que o amanhã, quem sabe, hoje faça sentido. Descobri que, às vezes, a voz do outro ajuda a dizer o sentir da gente, compreendi aquela coisa de desopilar o fígado fazendo algo para provocar mais amor do que alimentar desespero. Há salvação nisso, mais do que nas preces que se tornaram rotina. 

Descobri que ser diferente também significa variedade, e que a vida passa rápido, especialmente para os lerdos da minha laia, a dos que têm a mania de permanecer no amor como se ele fosse incapaz de declarar: sim.

E apesar de desafinada, sigo colecionando canções no diário de mim.


“Eu não tenho hora para morrer, por isso sonho.”
Rita Lee



Imagem © Vito Campanella

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Recebi com certo impacto, ontem, a notícia da morte da nossa rainha do rock tupiniquim. A existência dela, com a rebeldia calculada e a singularidade honesta, fazia todo sentido pra mim. As músicas dela são umas das minhas memórias mais antigas. E a voz, eu gostava muito...

Eu gosto de música, mas acho que não sou musical. Música tem uma função mais psicológica em mim, mas não me descreve como gente. O teu texto de hj me fez perceber que as pessoas podem ser construídas pela música, descritas por ela, organizadas e estruturadas por ela. É mais que um som que a gente ouve. Tem pessoas que são harmonia, som e tom.

Te lendo, me faz pensar que deve ter sido assim tbm pra Rita Lee. A música é como um rio em vcs. As vezes fluído, as vezes turvo, as vezes violento, mas apaixonado e puro deleite.
Acho que por isso que eu gostava tanto dela, porque desejo viver a fluidez de um rio assim. Vou sentir falta.

Obrigada pelo texto. Obrigada por decodificar um pouco essas cifras pra gente!
Um abraço.
Minesso disse…
Seus escritos têm aquela música que é só deles, né? Ou só sua, no caso. Não, acho que são deles, mesmo. E agora: sua ou deles ou dos dois? Tô na dúvida. Mas é uma música boa de ouvir, mesmo quando dói um tanto.
Albir disse…
"Há salvação nisto, mais do que nas preces que se tornaram rotina."
Brilhante, Carla!
Anônimo disse…
A musicalidade é o ponto alto desse texto. André Ferrer aqui.

Postagens mais visitadas