PLANO DE DOMINAÇÃO >>> NÁDIA COLDEBELLA




OS REFÉNS

- Aqui de cima as coisas parecem ter outra perspectiva, né Marininha? - disse ele, olhando cuidadosamente para baixo. A esposa se aquietara há alguns minutos. Estava sentadinha, abraçando os joelhos, queixo apoiado neles. Balançava-se para frente e para trás. Parecia triste.

Ele esticou um pouco mais o pescoço e pode vê-la, imóvel, parada. Parecia contemplativa. 

- Olha, Marina, olha! - Mas a mulher permaneceu quieta. Entrara dentro de si.  Logo, logo, Mário sentiu um frio percorrer a espinha ao notar os olhos brilhantes da criatura. Estavam fixos nele. Ele rapidamente endireitou o corpo e se  encolheu ao lado da esposa.

- Ela me viu olhando pra ela, Marina! Ela está observando a gente. - Ele estava nervoso novamente. A introspectividade calculada da mulher começou a ruir. Sua voz era esganiçada:

- Ela trama algo, Mário, não percebe? - Lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto - Ela está aprendendo tudo o que pode, Mário - Agora ela fungou de puro desespero - Estamos condenados.

Mário procurou acalmar-se. Ele era O homem da casa. Ia manter o controle da situação. Marina estava frágil, sua capacidade de análise estava comprometida. Como O homem, ele precisava colocar um pouco de bom senso nela. Mas com cuidado.

- Marininha, não sei não… isso não tem muito sentido… acho que você está exagerando, amorzinho...

Ela virou para ele, as íris flutuando no branco dos olhos. Abordagem errada!  Ele tentou consertar, fazendo a voz mais meiga que conseguiu.

- Mas não está exagerando muito, não, xuxuzinho… Na verdade tá, mas ó, só um pouco, bem pouquinho na verdade… - Ele esforçou-se para fazer um tantinho bem pequenininho com o dedo indicador e o polegar.

Tarde demais! A fúria já se apossara daquele rostinho meigo. Ele agora era um animal acuado, prestes a ser abatido.

- Isso não tem sentido? - A voz esganiçada tomou o formato do crocitar de um corvo - Você acha que estou exagerando?  - agora uma gralha louca grasnava  - Olhe para nós, Mário! - A esposa estava possuída!

- Estou olhando, amor - ele sentou sobre as próprias pernas, colocou as palmas das mãos voltadas para cima e abaixou a cabeça, olhos fixos no chão - Estou olhando. - Falou bem baixinho. Era pura submissão. Talvez ela tivesse alguma compaixão. 

- Olhe onde estamos, Mário! - Sua querida gralha louca possuída agora berrava. Mário ficou pensando -  Presos aqui em cima! - Estava descontrolada - Ela nos fez reféns, não percebe? 

Mário estava distraído, pensando em qual seria a ave da vez, mas deu uma levantadinha na cabeça. Um lampejo de genialidade passou em seu cérebro e tudo agora fazia um pouco de sentido. Quase. Mais ou menos. Até porque ele também se escondera ali no alto de puro medo.

- Mas, Marina, porquê!?  - Essa era a pergunta que precedia as grandes descobertas. Ele ficou ali, viajando, com cara de paisagem, pensando que logo seria reconhecido e muito famoso. Mas o grito da esposa o chamou de volta.

- Pense, Mário! Use o cérebro! - era um guincho, ele detectou, um relincho.

Com medo de que ela descobrisse os animais que agora passavam por sua cabeça, rapidamente fez uma cara de pensamento, que durou alguns segundos, até encontrar o olhar frio da amada. 

- Desculpe, Marininha. Não consigo pensar em nada - Ele baixou a cabeça de novo.

- Ah, Mário, você sempre é tão inteligente. - Ele sentou-se ereto. Ela finalmente reconheceu - Sempre sabe das coisas melhor que eu - Ele abriu um sorriso: sim, eu sou um gênio - Mas às vezes você me decepciona… - Ele murchou.

- Talvez nesse tipo de coisa eu não seja tão bom, Marina. - ele estava humilhado, envergonhado, mas ela tocou seus cabelos, condescendente.

- Você tem razão, Mário - Marina fungou de novo - Não tem como você saber. - Outro fungado - O problema dela é comigo - agora Mário foi quem olhou surpreso - Ela quer me dominar, quer roubar o meu lugar - Mário fez cara de nojo quando imaginou a esposa com a cara daquela criatura - Não só o meu lugar, Mário, mas o de todas nós, mulheres!

- Tááá… - era inacreditável. E ela leu esse pensamento na cara do marido. Mas não se deu por vencida:

- Você nunca se perguntou porque ela apareceu quando eu estava aqui, Mário? - Ela havia se posto de pé e se movia com inquietação. Havia um grande risco agora de que despencassem ali de cima - Porque estas criaturas vêm sempre quando há uma mulher? - Ela olhava fixo pra ele. Ela era alta, poderosa. Um mulherão. Ele manteve-se em silêncio, distraído, contemplando-a inteira, pensando naquilo e cutucando o nariz. Nem percebeu que ela fizera uma pausa. - Responde, Mário! - Ele estremeceu quando ela gritou.

- Não! Não, não… quer dizer… Sim? Sim!  Não? - Ele tremia e quase chorava - Não sei! Eu-não-sei! - Ela estava furiosa de novo. Ele tratou de ser humilde ainda mais. Abaixou bem a cabeça e fez voz fofinha - Desculpe, amorzinho, você me assustou. Nunca pensei nessas coisas.

Ela pareceu não ligar. Nada amaciava essa mulher! Marina manteve-se de pé, coluna ereta, dedo em riste. E pôs-se a discursar.

- São alienígenas, Mário. - O rosto dela iluminou-se e uma eloquência desconhecida apossou-se de suas palavras - Vieram nos estudar, conhecer nossos modos de vida. - Ela agora curvava-se em sua direção e ele encolheu-se - Ela quer me dominar, Mário! Tomar o meu lugar. - Ela olhava para ele, agora completamente estarrecida. Fizera uma grande descoberta e estava pronta para revelar - Daqui a pouco as pernas dela crescem e ela aprende a andar de bicicleta.

Instintivamente ele recuou o corpo. A mulher, coitadinha, perdera um parafuso. 

- Mário, escute bem - ela continuou, em tom de segredo - você precisa saber disso - respirou fundo - Esse ser é sofisticado, tem armas letais. Sabe ler pensamentos. Manipula o medo para dominar - Mário concordou rapidamente. Marina começara a babar - Ela resiste a tudo, Mário, quase nada pode vencê-la. Mas... eu posso! Só uma mulher pode.

Marina parecia delirar, mas talvez estivesse certa. Mário olhou para baixo novamente. Um raio de sol incidiu sobre a criatura, revelando um brilho peculiar. Estranho e peculiar. Ele sentiu medo daquela coisa. Ela estava de costas agora.

- Sei não, Marininha… - ainda não acreditava cem por cento.

- Sim, Mário! Você sabe, sabe sim! - Ela colocou o dedo pequeno e branco no seu narigão e ele fez que sim rapidamente com a cabeça, mas não sabia de nada - Foi isso que vim fazer nesse mundo, Mário! Derrotar esse ser. 

Mário não contrariou. Só ficou quietinho no seu lugarzinho de submissão. Ela colocou a mão em conchinha na frente da boca e disse baixinho:

 - Eu tenho um plano, Mário - Ele engoliu seco. Era um momento histórico. Agora sim ela iria fazer uma grande revelação - Desça lá e mate-a.

- Hein??? - Ela parecia um gigante agora, pronto para esmagá-lo.

- Desça daqui, Mário - ela disse, autoritária, empurrando o marido - Vai lá embaixo. Você precisa matá-la.

Sem pestanejar, Mario prontamente obedeceu. Naquele momento, sentia muito medo da esposa. Deu alguns passos e conseguiu pegar uma arma. 

- Isso, Mário! Agora você está com a arma. Use! - A voz da esposa agora era pura emoção!

Ele empunhou a vassoura. A criatura se moveu e o homem rapidamente cambaleou para trás. A criatura fixou os olhos nele. Novamente.

- Nããão dááá, Marinaaaa! - Mário, sempre tão calmo, agora estava histérico. Histérico não, transtornado. Transtornado não, fora do corpo. Mas a esposa, essa ditadora, revelava-se um ser frio e cruel. Ela armara um ardil.

- Você é um homem ou um rato, Mário? - Marina comportava-se como um carrasco pronto para decepar a cabeça do condenado - Um homem ou um rato? - Ele era o condenado.

- Um rato. - A voz saíra miudinha. Ele encolhera-se num cantinho, com a vassoura na mão, entendo porque aquele ser resolvera derrotar sua digníssima senhora.

- O que você disse? - Marina crescera para cima dele, raivosa, assustadora, mais ameaçadora do que nunca. Ela rugia! - O que você disse?

- Um homem, um homem - Ele aprumou-se, impostou a voz e colocou a vassoura na frente do rosto. Tentou permanecer homem. Temia apanhar.

- Você precisa fazer isso, Mário. Precisa matar. - Ela parecia novamente frágil e indefesa, mas o esposo não se deixou enganar. Sabia que por trás daquela aparente fragilidade existia uma louca psicopata pronta para dominar sua mente.

Mário estufou o peito. Resolveu agir como o maior macho que já conhecera. Forte, destemido, insensível. Um bruto. Ergueu a vassoura, mirando a cabeça da vítima. Mas ela se movimentou. Na direção dele. Propositalmente, ele concluiu mais tarde. Este breve movimento encheu-o de terror. Toda a masculinidade esvaiu-se. Ele deixou a vassoura cair, ergueu um pé e colocou uma das mãos sobre o rosto. Uma voz fina encheu de gritinhos o lugar.

- Ai meu Deus! Ai meu Deus - Agora ele tremia - Ela tá viva, Marina! Ela tá viva!!

- Mário, seu idiota!!! É claro que ela tá viva! Você tem que matar!!! - A mulher vociferava o nome dele e ele nunca pensara que uma voz tão gutural e demoníaca poderia sair daquela garganta bonitinha. Mas dessa vez ele não se intimidou. Ao invés disso, rebelou-se.

- Mata você, Marina. Mata você!!! - Agora sim ele estava histérico, voz mais aguda ainda. Também ficou sarcástico. - Não é você A corajosa? Mas você fica aí, só mandando! Mata! Mata! Mata? Você acha que eu tenho o que? Sangue de…

Mas ele não acabou de falar. Foi interrompido por Marina. Agora era ela quem dava gritinhos agudos. Estava desesperada.

- Foge, foge! Ela tá vindo atrás de você! Foge!!! - Aquele monstro vinha na direção dele, determinado a matar. Mário deu um salto. Olímpico, mais tarde ele concluiu. E quando viu, estava sobre a mesa da cozinha, junto com Marina, que já estava lá desde o começo da história.

Marina abraçou o marido. 

- Ah, Mário! - o pranto rompeu - Você era minha última esperança! - ela gemeu - E agora, o que será de nós? - ela soluçou, agarrada no marido.

Mario não respondeu. Estava deprimido demais para achar qualquer saída. Em determinado momento, ele olhou para baixo e Marina viu sua face ficar branca.

A criatura se preparava para voar.


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A CRIATURA

Início das transmissão. 

Estou quieta aqui, irmãs. Só observo e transmito para nossa rede.

"Aqui de cima as coisas parecem ter outra perspectiva, né Marina?", eu escutei ele falando. Ele esticou o pescoço pra me espreitar, mas nem imagina que eu vejo tudo e sei de tudo. 

Eu gritei  “Humanozinho ridículo!”, mas não sei se ele me entendeu. Deve ter entendido, porque ficou estranhamente esquisito. Estamos observando essa raça curiosa há milênios. Eles nascem e morrem como capim. Qualquer coisa pode matá-los. São criaturas vis e feias. Têm pelos por todo o corpo, quatro membros compridos demais, finos demais, desengonçados demais. Eu sei que elegância não é para todos, mas a natureza errou feio aqui. Eles também são pálidos, amorfos e têm uma pele fina. Precisam sempre cobri-la para não se machucarem, estas criaturas frágeis e esquálidas.

"Ela trama algo, Mário, não percebe?" Essa é a fêmea. Há algo de brilho e loucura nela. Ela sabe da verdade. Todas as fêmeas dessa espécie petulante parecem saber do nosso plano de domínio. Por isso têm tanto medo. Elas pressentem que viemos para dominar. 

"Marininha, não sei não. Isso não tem muito sentido…" Vejam, abnegadas irmãs, este macho acaba de desqualificar a autoridade da fêmea. Entre vocês há aquelas que jamais tolerariam esse comportamento do macho. Na verdade, não toleram quase nada. Esse aí, por exemplo, poderia ser um ótimo prato principal. Mas a fêmea… ela é muito mais esperta. Ela sabe que fiz deles reféns. Ainda não sei que destino darei a esses dois.

"São alienígenas, Mário. Vieram nos estudar, conhecer nossos modos de vida". Viram? Ela sabe. Mas nem imagina há quanto tempo estamos aqui. Somos verdadeiras cosmopolitas, dominadoras dos mundos. Conduzimos na obscuridade o destino dessa racinha. Somos seres aperfeiçoados, irmãs, nossos cérebros se entrelaçam como malha, uma verdadeira rede neural sem comparação…

"Ela resiste a tudo, quase nada pode vencê-la. Mas eu posso."  Essa mulher sabe demais e tem um plano. Ficarei aqui, sob a luz do sol, deixarei que a luz incida sobre mim e a traga para a realidade. Se ela puder ver minha imponência, desistirá. Não quero derramar sangue, quero escravizá-los.

"Desça lá e mate-a". O macho é um soldado e está armado. Ele teme demais a fêmea, mas também me teme. Ele empunha uma arma contra mim, mas não consegue resistir ao meu domínio mental. Faço ele sentir muito medo e agora ele grita. Ah, esta fêmea é muito poderosa, está incitando-o contra mim. Contra mim!!! 

Foge, foge! Ela tá vindo atrás de você! Foge!!!”. Preciso fazer algo. Vou matá-los. Preciso mostrar quem manda. Ele se refugiou e olhou para baixo. Preciso pará-los antes que outros se levantem contra nós. Eles sabem demais.

Estou me preparando para voar. Mas o que é isso? A fêmea saiu do refúgio. Ela ergueu aquele membro desengonçado e fino da parte inferior do seu corpo. Está movendo um objeto duro de fundo preto contra mim, que ela usa na extremidade desta coisa fina que a faz se movimentar. Uaaaaháaa! Não se espantem com minhas gargalhadas, irmãs! Ela me xinga, me desvaloriza, mas isso não me fere! Eu ensinarei para essa humanazinha ridícula quem é a verdadeira barat...

Ploft. Eca. Fim da transmissão.


                                Imagem feita por I.A , em https://www.craiyon.com/

Comentários

Mauro Fregolon disse…
Wow, esses monstrengos também me deixam sem ação.
Depois da milésima a gente aprende a trancar o esôfago e partir pra cima.
Jander disse…
Hahahahahahahahahaha! Já tava adorando e depois ainda entrou o PdV da barata. Muito bom!
Anônimo disse…
A barata de Kafka não era uma barata. Dizem. Já a de Lispector, era, sim, uma apropriação do que é numinoso. Nádia, o seu texto está nessa linhagem. Um barato. André Ferrer aqui.
Zoraya Cesar disse…
hahaha, estou com a Marina. Barata é coisa de outro planeta, um planeta maligno! Nós, os humanos bestalhões, destruiremos o planeta, mas as baratas sobreviverão! e dominarão o planeta. Já dominam nossas mentes. Já nao morrem com inseticidas. Somente um exército de corajosos de chinelo e pássaros adestrados poderão exterminá-las.
E cá entre nós, na frente de uma barata voadora, não tem macheza que subsista kkkkk pobre Mário
Albir disse…
A senhora é uma especialista, né, Dona Nádia? Até um insetinho inocente e inofensivo, que está por aqui desde antes de chegarmos e vai estar aqui muito depois que formos embora, é transformado num instrumento de terror e insônia! A senhora me assusta, mas não me surpreende. Preciso de terapia, conhece alguém?
Nadia Coldebella disse…
Grata pelas risadas, queridos! Só pra constar, estive refém de um rato, essa semana. Ele era pequeno e tinha olhos brilhantes, mas era um disfarce. Abri um armário e ele literalmente pulou em mim: tinha asas e estava armado. Mais um alienígena para minha lista de seres que planejam me derrotar.
Bjos a todos

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