Mãe >> Alfonsina Salomão

 


A menina veio correndo e firmou suas mãos espalmadas na barriga da mãe, impulsionando-a para trás. Socos e chutes romperam o ar na sequência. A mãe até agora não tinha entendido se esquivara as agressões ou se a menina efetuara os movimentos no vazio por querer, sem ousar tocá-la. Pouco importava, um limite havia sido ultrapassado.
 

Sentiu vontade de jogar a toalha. Correr, fugir, refugiar-se na casa de um amante e de lá nunca mais sair. O pai assistira a cena, buscara apaziguar a situação, acalmar a filha, mas não protegeu a mãe, não aos seus olhos. Normal, ela era a adulta, ela que engolisse, que aceitasse, que se controlasse. “Idiota”, a mãe lançou para a filha. O caçula não sabia mais o que fazer para mudar a atmosfera : deu um beijinho na mãe, cochichou com a irmã, fez palhaçadas... tudo em vão.

 

O pai estava de saída para o trabalho. “Vou chegar atrasado, mas vou deixar as crianças na escola”. “Não”, a mãe protestou, empurrando-o porta afora, com sua pasta, seu terno e seus ares de entendido. “Vai trabalhar, é meu dia de levar as crianças para a escola”. “Não!”, objetou o pequeno, meio desesperado, “é o papai que leva a gente”. A mãe não cedeu. Era ela a vítima ali, não aceitaria, além de tudo, ser tratada como louca.

 

Fizeram o trajeto de ônibus em silêncio. O menino perguntou as horas. A mãe sabia que a indagação vinha da irmã, cujo professor não tolerava atrasos. “Não sei”, respondeu. “Olha no telefone”, a criança insistiu. “Não quero”, disse, colocando nos ouvidos os fones que costumava emprestar aos filhos. Ignorou-os solenemente. 

 

As crianças adoravam este pequeno ritual: ir para a escola escutando musica com os fones sem fio da mãe. Esta manhã foi a mãe que aproveitou da música, apesar do gostinho amargo deixado pela consciência da própria mesquinhez. Que tipo de ser humano era ela, que sentia conforto ao escutar música, mesmo sabendo que estava fazendo vontade nos filhos? Ironia do destino, o aplicativo tocou “Você não entende nada” seguida de “Cotidiano”. Riu. Aplicativos agora leem pensamentos. Ou talvez um anjo da guarda compassivo quis lhe consolar, apesar de tudo. Anjos não deviam julgar. 

 

Neste momento decidiu que iria devolver a caixa de som que a filha ganhara no natal e que ela tinha confiscado alguns dias atrás, como punição, para ver se conseguia mudar o comportamento da menina. Não adiantou, claro. Não acreditava em castigos, mas estava prestes a quase qualquer coisa para domar o dragãozinho que tinha em casa. No fundo, quem mais aprendia nestas circunstâncias era ela: ao ver o sofrimento da filha quando privada de um objeto estimado, entendia de forma brutal a mensagem dos mestres orientais: não há felicidade sem desapego. Aquele que controla o alvo do seu apego tem uma capacidade imensa de te machucar. O poder dos adultos sob as crianças era de fato perverso. Talvez fosse por isto que a filha, já tão intensa e dona de si, apesar da pouca idade, se rebelava.
 

Chegando em casa chorou, sentindo-se um fracasso da maternidade. A filha estava fora de controle. “Acolha a raiva dela”, aconselhou uma amiga, que calhou ligar naquela hora. “Não quero acolher porra nenhuma”, ela se viu respondendo, para em seguida insultar os pregadores da parentalidade positiva, estes desocupados que passam a vida culpando mães e pais e incitando-os a criar monstros narcisistas, egoístas, autoritários e autocentrados. Depois foi o marido quem ligou, culpando-a por ter tratado a filha de idiota e dizendo que ela não podia lhe enxotar de casa como havia feito, ainda mais na frente das crianças. “E me tratar como se eu fosse incapaz de levar meus próprios filhos à escola, pode? E empurrar e bater na mãe, pode?”, respondeu aos berros antes de desligar o telefone na cara dele. 

 

Sua vontade era de mandar todo mundo tomar no cu. Ao invés disto, deixou uma mensagem para a psicóloga infantil cujo consultório ficava do outro lado da rua. Seus honorários eram caros para o orçamento familiar, mas não dava para continuar assim. Era necessário encarar os fatos: florais, conversas, presentes e passeios com a filha não estavam adiantando. Precisava de ajuda para ajuda-la a lidar com as emoções fortes que a habitavam neste momento. Sim, pouco importava o que dizia ou pensava, não era capaz de desistir da filha; sabia que na primeira oportunidade a pegaria no colo e encheria de beijos. Amor tinha. Mas às vezes não bastava. 

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Eu fico p. E seu texto me representa.

Alfonsina querida, ser mãe é padecer no paraíso e em mais um monte de lugares. E as vezes é a culpa, e não o amor, que impede a gente de sufocar docemente até a morte essas criaturinhas que a gente chama de filho. São nossos monstrinhos abomináveis, a razão da nossa existência.

Ignorá-los não sei, mas falando como ser humano, distanciamento as vezes é importante para manter a sanidade.

A única coisa que funciona de fato aqui em casa é a calma fria e impassível, a voz baixa e as palavras diretas. Assim imprimo um pouco de culpa e ganho algum respeito, pq qqr alteração minha e eles proclamam vitória sobre a louca desequilibrada (que possivelmente eu sou, mas ngm precisa saber).

De mãe pra mãe, não se frustre. A maternidade não nasce pronta: um terço é expectativa social, outro terço é um monte de gente sem filho ditando a melhor receita para ser mãe. Só um terço disso tudo é construção nossa e metade desse terço é de falha constante. E a gente vai falhar muito. Faz parte. A gente não é robô nem cria robôs.

Quando eu estou nessa situação, me dou conta de que os pequenos tbm escolhem e que boa parte da minha frustração vem do fato de eles não aderirem ao meu padrão de comportamento.

No fundo, eu não tenho, de fato, controle nenhum, então me esforço muito para mostrar a inadequação da atitude (minha balisa é o dano físico/emocional que eles causam). Não me estresso se se sentirem mal, arcar com as consequências dos atos (pedir perdão, reparar) e ter responsabilidade emocional faz parte do amadurecimento.

Obrigada pela escrita sincera.





whisner disse…
Que texto poderoso. Parabéns.
Albir disse…
Sim, que texto denso e importante, Afonsina!
Aliás, os dois textos, o seu e o da Nádia. Parabéns, mães, vocês sabem tudo até quando não sabem nada.
Zoraya Cesar disse…
Sua vontade era de mandar todo mundo tomar no cu.
Amor tinha. Mas às vezes não bastava.

Alfonsina, vc representou, mais que todas a mães, todo mundo que tem um relacionamento afetivo sério. Esposos, irmãos, namorados, até amigos. Até com bons colegas e chefes.

Quem nunca se sentiu injustiçado ou impotente? quem nunca teve vontade de mandar a pessoa mais querida do mundo tomar no cu? quem nunca teve vontade de chutar o pau, inclusive da barraca?

E essa frase final, amor tinha, mas às vezes nao bastava, foi impressionante, pq totalmente verdadeira. Amor é base, mas não basta. Não basta para dar, nao basta para receber. Nao vivemos só de amor. Não vivemos sem amor.

Um texto sincero e universal. Obrigada.
Anônimo disse…
Sim. Os pregadores da parentalidade positiva são uns m...! Primos dos justiceiros lacradores e dos cobradores de impagáveis dívidas históricas. Todos uns chatos exagerados. Adorei. André Ferrer aqui.

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