PELA INUTILIDADE DA VIDA >> Allyne Fiorentino

 


Você sabia que a lagartixa come mosquitos, baratas e outros bichinhos que podem transmitir doenças aos seres humanos? Sabia, também, que ela não oferece nenhum risco à nossa saúde? Pode fazer um carinho nela se quiser, nada te impede de ter uma relação mais próxima com a bichinha, a não ser que sua avó tenha dito que se tocar na lagartixa pega “cobreiro”. Sempre achei que “lagartixeiro” seria um nome mais apropriado para essa lenda. 
 
A abelha também, a maioria delas não tem ferrão, então elas não podem fazer nada pra te machucar e são extremamente importantes no processo de polinização. Mas aposto que você logo pensou na abelha africana, aquela amarelinha, que tem um ferrão, que aliás ela adia muito para usar em você, já que é a sentença de morte pra ela. Ah, você tem aflição se uma abelha sem ferrão pousar em você? Bom, vamos treinar esse toque físico: comece com as pessoas, abrace-as bastante, olhe nos olhos delas, depois toque os bichos, sinta as texturas... Acho que o que nos falta são os toques físicos e os olhares profundos, com bichos selvagens e com bicho humano. 
 
Os sapos também entram na jogada, aqueles sapos verruguentos que encontramos na fazenda também comem moscas, mosquitos e bichinhos que nos fariam mal. Então, apesar de você achá-los feios e nojentos (o que bem pode ser recíproco do sapo em relação a você), não há motivos para matá-los e nem ter medo deles. “Mas o xixi do sapo, se espirrar no olho, cega”. E você já conheceu alguém com cegueira de sapo? 
 
Se eu te convenci a não matar algum desses bichos, parabéns! Você acaba de provar que precisa de algum favor em troca de poupar uma vida inocente! É isso mesmo: imagine-se em uma cena de guerra, como nos filmes hollywoodianos, você com a arma na mão matando seus “inimigos” e de repente surge uma criança implorando clemência. Você olha e diz: se eu te deixar viver, o que eu ganho com isso? 
 
Esse é o perigo de capitalizar a vida, procurar “utilidade” imediata para a vida como temos visto rodar nas redes sociais esses posts que incentivam os seres humanos a serem mais humanos: não mate um animal, eles dizem. E como se não fôssemos humanos o suficiente para saber o valor inestimável de cada pequenina vida neste planeta, ele nos diz que eles têm alguma utilidade. Em que escala de evolução regredimos para termos de barganhar vidas? Realmente, estar nas redes é um experimento sociológico dos mais amargos. 
 
Não me espanta ter saído essa semana aquele comentário de um popular dizendo: “mas pra que serve onça?” “Se estão morrendo no Pantanal, que falta nos farão?”. Do ponto de vista da onça, ela poderia pensar o mesmo sobre nós. A diferença é que ela acharia bons motivos para que fôssemos extintos, já que somos uma espécie extremamente violenta, cruel e destruidora. 
 
Mas nós temos os cães e os gatos, que substituem nossa incapacidade de amar outros seres humanos de forma sincera. Quanto mais nos afundamos na crença da desvalorização das vidas, o que nos levará a uma guerra civil em poucos anos, mais acreditamos que somos capazes de amar apenas os animais domésticos. Não qualquer animal. Só os domesticados, adestrados, fofos, engraçadinhos, carentes... Há leis que os protegem devido a sua grande “utilidade” para os seres humanos. Eis porque a lei que protege os animais feios, agressivos, selvagens, livres, peçonhentos, venenosos e inúteis a nós não é levada a sério. O mesmo se estende às vidas humanas que consideramos inúteis. Somos bichos freudianos: procuramos prazer imediato. E isso chega a ser tão animalesco que eu nem reluto até em usar essa palavra, pois o animal parece mais civilizado. 
 
Eu conheci um homem que salvou uma lagartixa. Em seu post ele contava que ela caiu na cola e as patinhas ficaram grudadas. Com um algodão e azeite de oliva, ele pacientemente a limpou. Ela não tinha nenhuma utilidade pra ele. Seu relato me comoveu tanto que lhe enviei um pedido de amizade. É sempre bom se relacionar com alguém que você sabe que não procurará utilidade na sua amizade para que ela continue existindo. 
 
É por isso que eu sou a favor da inutilidade da vida: que todas as vidas possam ser igualmente inúteis como a vida dessa pequena lagartixa. Que nunca tenhamos de medir uma vida pela sua utilidade, porque todos seremos ceifados. 
 
Allyne Fiorentino é mineira e mora em São Paulo. Mestra em Estudos Literários pela Unesp, especialista em Design Instrucional e graduada em Letras Português/Espanhol pela UFTM. Atuou na área de pesquisa de Teoria e Crítica da Poesia, Simbolismo brasileiro e hispano-americano, estudando os autores Cruz e Sousa e Rubén Darío. Atua na área de novas tecnologias aplicadas à Educação a Distância e autoria de material didático. É apaixonada por Literatura Feminina como instrumento histórico-social para compreender o papel atribuído à mulher na sociedade e o feminismo. 
 
* Uma parceria com a Revista O Bule.
 
Ilustração: Pixabay

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Muito bom! Nunca vi cegueira de sapo, mas seu texto me faz pensar nas diversas cegueiras de hj em dia, especialmente as da razão!
Adriano disse…
Fui convencido a não matar nenhuma vida inocente. Ótimo texto,
a utilidade da vida é a própria vida, que é por si divina.
Zoraya Cesar disse…
"Não me espanta ter saído essa semana aquele comentário de um popular dizendo: “mas pra que serve onça?” “Se estão morrendo no Pantanal, que falta nos farão?”
Nao sabia desse caso específico, preferia nao ter sabido, mas é um fato inescapável que a maioria pensa exatamente assim, ou a natureza e o meio ambiente nao estariam essa guerra de extermínio que estamos promovendo.

Amei a sua inversão, vamos proteger a inutilidade da vida. Muito muito bom mesmo. Um prazer de leitura.
Albir disse…
Obrigado, Aline, por nos ajudar a ser mais humanos. Bem-vinda ao Crônica do Dia!
Carla Dias disse…
Allyne, seu texto é um resumo maravilhoso de como a inutilidade pode nos ser útil. Muito bacana!

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