E AGORA, TIO? >> Albir José Inácio da Silva

 

Antes

Chamavam de tio por causa do nome, Tionel, mas já era avô.  Alguns o chamavam de Tio-mel porque era gentil e sorridente. Aposentado da prefeitura, passava o dia acenando e dizendo brincadeiras para os munícipes de todas as idades. Em casa cuidava da horta, enquanto ela cuidava das flores.

 

Ela era Isabel, ou Bel como ele chamava. Diziam que vivia para a casa, mas na verdade ela vivia para ele. Os amigos brincavam que na cidade só existia uma pessoa melhor que Tionel, a Bel.

 

Chamado

Aos primeiros acenos sobre o perigo vermelho, Tionel respondeu com incredulidade e o sorriso de sempre. Ouviu sem muito interesse sobre os quintilhões roubados, os sem-teto com quem teria de dividir a casa e a dieta de comer cachorro que adviria se o comunismo ganhasse as eleições. Tionel trabalhou com professores na prefeitura e não acreditava que fossem capazes de distribuír cartilhas-gay ou usar mamadeiras eróticas nas creches.

 

Mas tudo mudou quando o reverendo, apontando a Bíblia aberta, esclareceu tratar-se da luta do bem contra o mal. Aproximava-se a última batalha, o armageddon.

 

Fidelização

Agora a história era outra. Professores, sem-teto e governantes sozinhos não cometeriam tais atrocidades, mas, possuídos pelo demônio, eram capazes de qualquer coisa.

 

Tio-mel virou Tio-fel, voz estridente, já não distribuía sorrisos, distribuía zaps ameaçadores que recebia de novos amigos desconhecidos. Brigou com a família. Pregava contra vacinas, direitos humanos e universidades. Até o andar mudou, parecia marchar, usava camisa da CBF vinte e quatro horas por dia.

 

Não saía mais da igreja, discutindo a ameaça comunista, o fechamento de templos e o desarmamento dos cidadãos de bem. Recebia cartazes, bandeiras e panfletos. Era tempo de eleições e os candidatos foram classificados em ungidos por Deus ou pelo Diabo.

 

Acampamentos

No início não queria deixar a Bel sozinha, mas aquela era a missão da sua vida. Foi convencido de que o acampamento era seguro e confortável. Bel ia junto, seria um passeio a Brasília.  A proposta era ônibus, comida, bebida e barraca de graça.

 

A confraternização era tão animada quanto a praça da sua cidade, mas Tionel estava preocupado. Três vezes por dia as caixas de som anunciavam prisão de inimigos, estado de sítio, movimentação de tropas, mas nada acontecia.

 

Setenta vezes setenta e duas horas esperou Tionel o golpe do artigo 142, que não veio. Mandou sinais celuláricos para os extraterrestres, mas eles não responderam.

 

Vivia de esperança: o ungido vai falar! As tropas vão se mexer! Via sinais no desenho das nuvens, nas bandeiras a meio pau e até no silêncio. Finalmente alguém gritou:

 

- É amanhã!

 

Dia D

Não ia porque a Bell não desgrudava dele. Mas depois de muitas orações e hinos militares e religiosos, Tionel sentiu uma energia que não pôde controlar. Era a batalha final, não podia ficar de fora.

 

Enquanto as pessoas se preparavam para a marcha, uma liderança bradou ao microfone:

 

- Passou o tempo do amor, somos guerreiros de Josué, a Bíblia hoje é o velho testamento!

 

Na hora H, enquanto os outros patriotas quebravam tudo, Tionel olhava embevecido a grandiosidade da obra de Niemeyer e Bel acariciava umas peças no aparador - ela gosta muito de bibelôs!

 

Quando a polícia entrou, os outros correram, mas Tionel teve de ajudar Bel com o joelho doente. Foram alcançados.

 

Papuda

Muitos idosos são liberados, mas eles foram presos em flagrante.

 

- A invasão já é crime, mas estamos tentando provar que vocês não depredaram. Espero que as imagens das câmeras ajudem – diz a defensora pública para Tionel.

 

Ela olha com pena a figura curvada se afastar para o pátio, mas só por um minuto porque a Defensoria tem centenas de casos para atender. Parece que o financiamento de ônibus, alimentação e barracas não inclui o pagamento de advogados. Ela fica pensando se algum dia, além de tios e tias, serão trazidos também os fazendeiros, reverendos, militares e empresários terroristas.

 

No banco de cimento colado à parede que circunda o pátio, Tionel sente remorso porque sua Bel está na cadeia feminina sem ninguém para lhe massagear o joelho dolorido. Queria estar em casa com ela e na praça com os amigos. Suas verduras, como estarão? E as flores da Bel? E a Bel?

 

Chora.

Comentários

whisner disse…
Alberto, que crônica! Muito Tio-mel tinha o Tio-fel incubado, só esperando oportunidade pra vir à tona. Parabéns.
Nadia Coldebella disse…
Sensacional!

Andei cruzando com muitos Tioneis, na minha família inclusive: pessoas de vida pacata, que foram convencidas dessa luta absurda do bem contra o mal.

Mas confesso, dom Albir, que sou mais pessimista que vc. Não acho que essa gente tem qualquer inocência ou foi vítima de enganação.

Os Tioneis q conheci sentiam prazer nas ameaças, apoiaram o quebra-quebra, ainda defendem que o bandido bom é bandido morto... Enfim, são um poço de contradição, defendendo maldades em forma de pretenso bem. Na minha opinião, são monstrinhos disfarçados de tiozão. Eles se deleitam com o caos que causam e o revestem sob o manto de direito.

Uma tristeza que só. Uma verdadeira história de terror.

Gde abç!
Zoraya Cesar disse…
Na verdade, tenho pena. Tantas pessoas boas engrupidas. Não acho que tinham um tio-fel pronto a explodir nao. Ou, melhor, todos temos um lado sombrio que precisa apenas da chave certa para escapar. Não podemos subestimar a capacidade de convencimento de certas personalidades. Qtos adultos nao se envolveram com roubos, drogas, traições ao casamento, por conta de más influências? nem todo mundo é forte. Repito: tenho pena de todos os tios-feis. Me julguem. Ou não, q se me julgarem eu faço um conto sinistro com vcs kkkkk.
Carla Dias disse…
Albir, quem disse que não é possível, né? Sim, é possível uma pessoa gentil se tornar violenta - física, emocional e socialmente - ao ser acertada por um pensamento e mergulhar na certeza de que ele está certo. A certeza não cabe em tudo. Não cabe na compreensão de que não é bom pra ninguém quando abraçamos certezas que afetam não somente a nós mesmos, mas ao outro.
Albir disse…
Obrigado, Whisner, Nádia, Zoraya e Carla, pela generosidade!

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