DEPOIS DO GRANDE VERÃO VERMELHO - QUASE O PARAÍSO. QUASE.>> Zoraya Cesar



Alfonsine precisava de um café. Esticar o corpo. Respirar ar puro. Espairecer para pensar. Há mais de duas horas examinava provas, confrontava evidências, torturava seu cérebro em busca de coincidências, pistas, qualquer coisa que levasse à elucidação da morte do botânico Tinds Bârd. Descartada a hipótese de suicídio pela perícia, a equipe de Homicídios de Alfonsine encarregou-se do caso. 

Bebeu o café, pegou a bicicleta e saiu. Ar puro não era problema. Praticamente todos os meios de transporte e fontes de energia poluentes haviam sido trocados por sistemas limpos – energia magnética, solar, eólica... Extensas malhas cicloviárias cortavam bairros e municípios, permitindo que ciclistas chegassem a pontos longínquos em pouco tempo, com segurança e praticidade. As ruas, arborizadas, arborizadíssimas, para descrever com exatidão, tanto nos centros comerciais quanto nos bairros residenciais, davam à cidade um aspecto de nouveau bucolique, o movimento socioambiental e estético que equilibrava sustentabilidade, natureza e homem com modernidade, respeito e arrojo. Humanos, animais, plantas. Terra, água, fogo e ar. Tudo em equilíbrio. Todos em harmonia.

A geração de Alfonsine só conhecia dos livros de história doenças como zika, ebola, H5N1 ou outras epidemias surgidas em consequência dos desequilíbrios ambientais provocados pela humanidade. Nunca presenciaram extinção de espécies, desaparecimento de rios, desertificação. A cadeia ecológica alimentar e o ciclo da vida seguiam seu ritmo natural. Enfermidades existiam, sim, porque adoecer faz parte da existência, mas eram endógenas ou provocadas por algum acidente, em sua maioria, e não por poluição ou outras mazelas ambientais. A indústria farmacêutica produzia apenas remédios que não causavam dependência ou efeitos colaterais, e as patentes eram públicas. Era vedado lucrar com a doença. Definitivamente, pensou, vivemos num mundo melhor que o de nossos antepassados.

Ela se referia ao Grande Verão Vermelho – a catástrofe ambiental quente, febril, violenta que, havia pouco mais de um século, quase dizimara não só a humanidade como toda a vida na Terra. Desflorestamento, extermínio de manguezais e recifes de coral, emissão desenfreada de gás carbônico, consumo inconsciente, tudo acabara por levar àquela calamidade, praticamente uma hecatombe de proporção planetária. Doenças erradicadas ressurgiram com letalidade assustadora, mosquitos transmissores de doenças fizeram vítimas aos borbotões; a agricultura e a pecuária foram praticamente extintas: durante décadas só havia disponível, nas prateleiras dos supermercados, comida industrializada. O tráfico de alimentos frescos ou carne apropriada ao consumo formou verdadeiras máfias, mais poderosas que as de drogas ou armas, à época. Insetos nocivos, ratos, pulgas, pragas, tudo se alastrou, devido à falta de predadores naturais, mortos pela sucessão de desastres ambientais que levaram ao Grande Verão Vermelho. 

Felizmente, parcela significativa da humanidade reagiu a tempo. Da maneira certa, dessa vez.

A policial, entretida nesses devaneios, mal percebeu que chegara ao seu bairro preferido, cheio de casas, quintais, pássaros e silêncio (um dia consigo morar aqui). Parou para descansar. Gotas de suor caíam em seus olhos, ardentes, fazendo-a piscar repetidas vezes. Talvez por isso tenha percebido um  brilho estranho no gramado ao lado. 

Uma torneira vazava finíssimo fio de água, imperceptível, quase, mas que formava uma pequena poça onde raios de sol brincavam de colorir a superfície. Alfonsine registrou a ocorrência e dali mesmo, pelo sistema operacional de seu celular, multou pesadamente o infrator (desperdício de água era considerado infração gravíssima). Providenciou que o vazamento fosse estancado e preparou-se para voltar à delegacia.

Ao dar a volta, um gato amarelo atravessou na sua frente, preguiçoso e indiferente, o dono da rua. Ela sentiu que algo despertara no fundo de sua mente. O gato parecia uma onça em miniatura, ronronando para alguma ameaça invisível. Onça... Alfonsine gostava de onças. Tivera a sorte de ver uma quando menina, seu avô a levara para acampar em uma reserva e o bicho chegou perto o suficiente para a criança olhar, embevecida e maravilhada, o elegante felino caminhando sobre as pedras. Foi mesmo muita sorte, porque não havia mais zoológicos ou circos onde os animais fossem confinados, aprisionados ou usados para fins comerciais. Existiam reservas, com rígidas regras de visitação e centros de tratamento e adaptação à vida selvagem.

E por que manter centros de adaptação à vida selvagem se não existiam mais circos ou zoológicos?
Porque não existiam mais circos ou zoológicos... legais! Mas havia os clandestinos. 

A ideia que se agitava no fundo de sua mente surgiu, gloriosa. O professor Tinds Bârd era botânico. Vivia dentro da reserva florestal que administrava. Não tinha animais domésticos. Então, o que seriam aqueles pelos encontrados pela perícia em seu carro? De repente, tudo ficou muito claro. Como não pensara nisso antes?

Zoos e circos com animais foram proibidos depois do Grande Verão Vermelho. Mas espetáculos proibidos sempre exerceram um certo fascínio sobre algumas pessoas. Ainda mais quando havia muito dinheiro envolvido.

Cifras milionárias alimentavam uma rede de tráfico de animais selvagens, levados a circos e zoológicos


ilícitos. Os criminosos eram cautelosos e audazes, pois a vigilância incessante dificultava a prática. Ademais, a pena para os envolvidos – fossem meros espectadores ou os donos do negócio – implicava a perda total de bens e a prisão por muitos anos, além do opróbrio público para a eternidade. Mas não há lei que não possa ser burlada.

Ligou para o laboratório e pediu urgência na análise dos pelos. Sua teoria era que o professor fazia parte do esquema ou descobrira provas incriminadoras sobre alguém da reserva. Seu sexto sentido lhe dizia que a primeira hipótese era a correta. Os bancos em breve dariam conta da movimentação financeira da vítima. De qualquer forma, encontrara um fio por onde se guiar e seguiria os passos de sua intuição. 

Aliviada e excitada ao mesmo tempo, Alfonsine pedalou de volta para a delegacia. Como ainda temos tanto a fazer. A humanidade aprendera a lição do Grande Verão Vermelho da maneira mais dolorosa. Mas agora era um bom, um maravilhoso momento para se viver na Terra. Não foi só o endurecimento das leis que diminuíra ao mínimo o ataque e o desrespeito às formas de vida com as quais dividíamos o planeta. Foi, mais que tudo, a profunda compreensão de que estávamos todos presos na mesma casa, na qual o bem-estar de um é a sobrevivência do outro. Podia-se dizer que, pela primeira vez na história, a humanidade chegara perto do Paraíso. 

Para evitar o retorno do caos que antecedeu o Grande Verão Vermelho, a parte consciente da humanidade – esmagadora maioria, felizmente – trabalhava unida, vigiava incessantemente. No entanto, filosofou Alfonsine, enquanto houvesse um humano sobre a Terra, haveria desvios. Afinal, se há algo imutável no Universo é a dualidade da natureza humana. Não estamos, ainda, no Paraíso. Mas quase.

Por isso escolhera ser policial. Para agir efetivamente, para impedir que esse ‘quase’ se desvanecesse em grandes verões vermelhos. E ela sabia que, se não existe paraíso na Terra, existe terra no paraíso. E água. E ar. E seres. E nossa Alma inefável. Alfonsine iria ajudar a preservá-los.



 

Esse conto foi originalmente publicado em 31 de maio de 2019 e faz parte do projeto Crônica de ontem

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Zozinha, querida! Como é que vc me arranja uma assassinato até numa utopia? Tá bem que é antigo, bem antes do nosso quase fim de mundo recente.

Por falar nisso, me arrepiei quando vi vc falando do verão vermelho... Esse texto é de 2019. Praticamente uma profecia.

Tem um lado seu que é Madame Zoraya. Se precisar de uma bola de cristal, me avisa.

Bjão!
branco disse…
a grande Nádia disse tudo. Não me atrevo a acrescentar ou retirar nada, assim me resta assinar o que ela disse.
Marcio disse…
Zoraya, fui buscar o que comentei em maio de 2019 e, sem nenhuma surpresa, constatei que meu comentário mereceu o esquecimento a que foi relegado.
Ainda assim, tenho a cara de pau de transcrevê-lo abaixo:

"Zoraya, tudo bem que você é ficcionista, mas esse ambiente que você criou - com a minúcia descritiva habitual - só existe nas promessas de campanha eleitoral. Ou em sonhos sem qualquer compromisso com a realidade."

Bom, de lá para cá tivemos nossa versão do grande verão vermelho, para constatarmos que nossa espécie não perdeu a oportunidade de perder mais uma oportunidade.

Não aprendemos nada.

Mas obrigado por avisar.
Antonio Fernando disse…
Querida amiga, é sempre um prazer ler seus contos.
Alguns deixam-me saudoso. Outros feliz, outros triste, outros justiçado.
Esse me deixou esperançoso. Não pra mim, claro, não dá tempo do ser humano amadurecer o suficiente para que eu veja isso. Mas esperançoso para com os que deixarei aqui nesta Terra, filhas, netos, bisnetos etc.. Que um descendente meu seja Alphonsine!
Beijos
Albir disse…
Já escuto os sinais do grande verão vermelho. Mesmo quando esperançosos, sugerem que o medo está chegando.
Dormir pra quê?
Carla Dias disse…
Eu me lembro desse texto, e de como o "quase" me pegou. Porque nunca teremos o inteiro, não? Haverá sempre alguém andando na contramão, e isso pode ser cruel e fatal, mas também pode ser lindo e inspirador. É no "quase" que isso é decidido.
Bom te ler, Zoraya!

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