A NOTA >> Carla Dias


Tirou o casaco de dentro da máquina de lavar e vasculhou os bolsos enquanto, na sua mente, a frase se repetia, como se fosse ela a proferi-la: é bom quando a gente encontra uma nota perdida no bolso, nem que seja de um cruzeiro

Encontrou somente um cartão magnético de banco. O efeito não foi o mesmo, mas achou sorte não tê-lo colocado para lavar junto com o casaco.

Sorte. Nunca confiou nela, mesmo quando rezava para que ela funcionasse.

A avó costumava falar sobre como era bom achar algo que não estava procurando; a delícia da surpresa. Foi criado sob o olhar e os cuidados dela, que resumiu, em um agrado singelo, o prazer de encontrar o inusitado. Para um menino, pivete danado, mas apreciador do carinho oferecido por ela – nunca se recusava a se guardar no abraço da avó –, aquela nota chegou feito o maior tesouro da sua ainda tão curta vida. 

Sua primeira nota.

A avó gritou, lá da cozinha, enquanto terminava de preparar o jantar, moleque, coloca o casaco que tá frio e depois vem comer. Sem perder tempo – estava faminto, depois de passar o dia brincando de escutar música e bancar o cantor –, vestiu o casaco, ajustou a gola e, quando enfiou as mãos nos bolsos, uma delas encontrou a novidade. Em silêncio abismado com o contentamento inédito, temendo estar errado sobre algo que necessitava que fosse certeza, engoliu o desejo de sair celebrando sua euforia pela casa e seguiu rumo à sala de jantar, em silêncio. 

Lembra-se do olhar da avó, de quem esperava uma resposta. Costumava fazer mistério com a sobremesa do dia, pedindo a ele que adivinhasse qual era e, quase sempre, era a que ele mais gostava. Ela lhe confidenciou – em um dia em que a saudade do filho se entortava dentro dela – que adorava como o menino fechava os olhos antes da primeira mordida: parece que partiu em viagem pro exterior.

O exterior é mais do que os portões dos aeroportos que ele já atravessou. Também é a distância que mantém de si mesmo. Encurtá-la é doer de um jeito que ele não aprendeu a sentir; ainda não se permitiu doer.

O avô observava os dois, um sorriso teimando em querer escapar. O menino dizia o nome de uma sobremesa qualquer, para que a avó, com seu jeito bravo encenado, de abrir espaço para sua gargalhada engasgada, dissesse até parece que eu sei fazer isso.

Não era segredo para o menino que ela sabia fazer todos os tipos de doces do mundo. A geografia dessa certeza pode ter mudado, porque, mais tarde, ele se deu conta de que tudo saía do livro de receitas da bisavó. Só que, para ele, o mundo saia dali, do caderno e de sua casa, onde vivia com as pessoas mais velhas que conhecia; as mais queridas por ele. Aquela brincadeira de adivinhação era uma encenação a ser finalizada com um agrado. 

Há dias em que a falta de agrado o sufoca. Não o do escambo, da busca desatada pela influência; o agrado de quem realmente gostaria de estar perto dele. Para quem sua presença fizesse sentido.

Depois do jantar, os três seguiam para a sala de estar, ligavam a radiola e ficavam um na companhia do outro, divididos entre notícias e canções. Naquele dia, quando enfiou as mãos nos bolsos, e encontrou o novo, o menino sentiu a vida lhe empurrar um misto de susto e prazer, de fazer coração dançar em ritmo diferente. Gostou de ver a avó fingir que nada acontecia; o avô escutar radiola como se coisa nenhuma pudesse fisgar sua atenção. O plano deles a se desdobrar no seu bolso.

Para o menino, as noites em que decidiam escutar radiola antes de dormir eram mágicas. Mas aquela foi a mais especial de todas. E quando novamente enfiou as mãos nos bolsos, uma delas trouxe para fora do casaco o seu futuro. 

Sentou-se àquela janela muitas vezes. Houve vez que foi por causa de preguiça, mas também veio aquela na conta da tristeza que ele ainda não entendia. Ficou muito tempo nesse desentendimento, enquanto a avó se acostumava a circular pela casa esvaziada da presença de seu avô.

O avô adorava aquela radiola. No dia em que o neto enfiou as mãos nos bolsos do casaco, e de lá tirou a sua primeira nota, ele sorriu como se não se importasse de sorrir, o que era algo extremamente esquisito para um carrancudo feito ele. O menino se demorou no sorriso do avô, era como se a eternidade tivesse se acomodado entre os lábios dele. Mas então a avó gritou de novo, provocando gargalhadas: acaba logo com essa espera, menino! Tá enrolando por quê? Tá esperando o mundo acabar primeiro?

A avó lhe explicou, algum tempo depois, que não era àquela nota que ela se referia ao repetir a tal frase. O menino entendeu isso mais tarde, quando começou a estudar, a gaita encaixada entre os lábios como se fosse sorriso. Quando, antes de compreender que a música lhe cabia, desafinou para reconhecer o valor de uma nota afinada. 


Imagem: Fenómeno de Ingravidez © Remedios Varo


carladias.com.br

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Essa conexão que a criança constrói com os avós é linda; as explicações que a avó vai trazendo depois vão enchendo a vida do menininho de sentido, né? Você conta essa história de um jeito que parece que ela foi vivida. (Seria esse menino um alterego?)
Tenho muitos adjetivos para esse teu texto: incrível, nostálgico, doce, triste, até esperancosa... Mas, mais que isso, ele toca o coração!
Gde bjo
Patrícia Correa disse…
Esse texto é a propria surpresa; coisa boa e inesperada expressa em palavras e desenvolvida no afeto.
Albir disse…
O amor dos avós é difícil de explicar. Talvez a música faça isso melhor.
Zoraya Cesar disse…
que texto mais lindo e singelo. mas aquele travinho de tristeza lá no fundo. Espero que as notas encontradas despertem o menino nele e o descarranque de vez. Que saudades vc me deu agora da minha Avó!

é o que faz um texto bom: desperta a gente!

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