E AGORA? - Segunda Parte >> Albir José Inácio da Silva

 

(Continuação de 21/02/2022)

 

                                                       SOLDADO

 

Quando tudo parecia apontar para a recuperação da dignidade fardada, somos atirados outra vez no purgatório. Ou no inferno, se considerarmos a onipresença da internet.

 

Na infância, eu brincava de soldadinho. Soldados eram meus heróis. Não poderia ter seguido outro caminho. Muito jovem, ainda na escola militar, apoiei a gloriosa revolução de 1964. Era preciso salvar o Brasil do comunismo.

 

Mas nem tudo eram flores, nem todos eram perfeitos. Discordei quando ouvi sobre as torturas e assassinatos. Não precisava disso. Mas também me irrita o que dizem os livros de História. Erros todos cometem, e acidentes de trabalho acontecem com quem trabalha. Pior ainda a tal da comissão da verdade. A gente tinha que fazer essa gente engolir aquelas páginas de mentiras.

 

Eis que surge lá do fundão, do baixo clero, aquele que poderia mudar essa História e trazer de volta a dignidade. Figura polêmica, é verdade, mas são assim os heróis. Ele, que foi expulso por indisciplina porque queria defender a honra e os interesses da família fardada, abrigou-se em outra trincheira, o legislativo, mas não abandonou a luta.

 

Os comandantes, que antes o perseguiram, enxergaram nele a oportunidade de redimir a instituição vilipendiada nas aulas de História. Era preciso reescrever esse tempo e honrar aqueles que bravamente cumpriram a espinhosa missão de combater os rebeldes. Se  morreram alguns inocentes, “paciência, toda guerra morre inocentes!”

 

Essa insatisfação se casou com a dos líderes religiosos triunfalistas. Não lhes bastavam os jatinhos, os carrões, as fazendas, as isenções de impostos, queriam mais. Queriam poder! Era chegado o momento. Eles eram bem-vindos!

 

E eu entrei de cabeça. Não perdia uma oportunidade, fazia campanha na fila do banco, no supermercado, nas festas de família. Não tínhamos como perder. Além das promessas de valorização da categoria, havia a certeza de que Ele era ungido de Deus.

 

Nossos comandantes não pestanejaram, até recados enviaram ao STF sobre decisões.  A justiça fez a sua parte, criando novos e reluzentes heróis. A ocupação vinha de todos os lados. Colinhas com os nomes dos candidatos eram distribuídos nas igrejas em meio a glórias e aleluias. Não podia dar errado. E não deu!

 

                                                                     *******

 

Confesso que levei um choque quando surgiram as primeiras denúncias antes mesmo da posse. Mas toda família tem problemas e Ele não pode responder pelos filhos. A esperança continuava.

 

A coisa piorou: rachadinha, desvio de verba, lavagem de dinheiro, chocolates, imóveis, milícias, ameaças de golpe, racismo, símbolos nazistas, gestos supremacistas. O horror!

 

Entre nós também havia problemas. Alguns chefes discordaram, se afastaram, denunciaram, foram exonerados. Mas ainda somos milhares ocupando a administração, só precisamos de rumo, de liderança. E surgem novos escândalos: oficiais são flagrados em negociatas e fraudes envolvendo vacinas, propinas e tráfico de influência.

 

Tudo pode piorar e Donald Trump, o grande irmão do norte, perde as eleições e o diabo continua agindo para que isso se espalhe pela América Latina. Ele, o ungido, já não fala coisa com coisa, não defende os amigos, frita os apoiadores quando já não interessam. Isolado, só conversa com ditadores sanguinários.  O Brasil é pária!

 

E como ficam nossos pensamentos debaixo do quepe? Antes tão simples: americanos eram amigos, cristãos, cidadãos de bem; russos eram inimigos, comunistas, ateus, nazistas de esquerda e destruidores da família.

 

Agora essa confusão: os russos viraram conservadores e juntos com a China, antes comunista, e os árabes, antes terroristas, são os amigos, que combaterão a NOM (Nova Ordem Mundial), que é uma espécie de novo comunismo.  Como sobrevive um cérebro conservador no Brasil? O que conservar e o que execrar?

 

Eu fico humilhado no meio de tudo isso. Como vou passar à História? O que vão pensar os netos, quando me virem de uniforme, galões e medalhas, e souberem o que andei defendendo?

 

(Continua em 21/03/2022)

 

Comentários

Nadia Coldebella disse…
A tristeza é saber que apesar de toda a estapafurdice estampada em grandes outdoors, sempre há a resistência dos 20 por cento...
Aguardando sem dormir a parte três desta história de terror!

Abçs!!
Zoraya Cesar disse…
Tô até com pena do pobre personagem, já sei que Dom Albir vai pesar a pena. Mas conto com a ironia misericordiosa que vemos em suas linhas. Esperanço uma redenção não sangrenta. E aguardo ansiosa!
sergio geia disse…
Esse personagem me remete a muitos queridos. Que triste.
Albir disse…
Obrigado, Nádia, Zoraya e Sérgio!

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