Lidiane >> Alfonsina Salomão


Ela tinha a pele morena e levava os fios crespos alisados num coque. Seu semblante faceiro contrastava com o rigor imposto aos cabelos. Suas unhas, demasiado compridas e, aos meus olhos, vulgares, não combinavam com a vestimenta: blusa larga sem decotes e saia jeans até os joelhos. Ao seu lado estava sentado um jovem negro, alto, bonito. Ela também era bonita. 

 

Foi ele quem puxou conversa, logo após a decolagem. Fazia fotos e filmes da janela do avião e me perguntou, gentilmente e sem conter o entusiasmo, se eu também gostaria de registrar o momento. Eu estava assentada na poltrona do corredor. Declinei. Ele me contou que voava pela primeira vez. Ela me dirigiu então seu olhar, até então absorto nas pedras e montanhas lá embaixo, e confirmou com um sorriso. Trazia aparelhos nos dentes, o que lhe conferia um ar ainda mais jovial, uma certa ingenuidade.

 

Fiquei curiosa. Quem seria aquele casal formoso, educado e alegre, que viajava de avião pela primeira vez? Por que faziam o trajeto Rio de Janeiro – Florianópolis? Turismo, nestes tempos difíceis? Pois deduzi, pelas roupas, pela simplicidade e pelos tons de pele, que moravam num bairro periférico do Rio, provavelmente numa favela, ou comunidade, como alguns preferem dizer, num esforço para neutralizar os estereótipos negativos ligados ao termo “favelado”. Não queria soar ofensiva, mas nada neles sugeria que se ofenderiam. Então perguntei: “Aonde vocês moram no Rio de Janeiro”? “Na Baixada Fluminense”, ela respondeu. Gostei da sua afirmatividade. Emendei que tenho um grande amigo que nasceu na Baixada, o que é verdade, para diminuir um pouco a distância entre a gente. A partir daí a conversa fluiu naturalmente.

 

Se chamavam Walter e Lidiane. Apesar de ter iniciado a conversa, depois que Lidiane começou a falar sobre eles Walter se calou, ressabiado. Talvez não tenha gostado da invasão de intimidade. Talvez não quisesse que eu soubesse de onde vinham nem porquê viajavam. Talvez tenha sentido a diferença de classe com mais força que Lidiane e preferisse não se expor. Ela, ao contrário, parecia alheia a qualquer uma destas considerações. Era uma mulher jovem contando a uma mulher um pouco mais velha seus sonhos e conquistas. Escutei com prazer.

 

Lidiane era cantora. Cantava gospel para igrejas evangélicas na Baixada Fluminense e esta era a primeira vez que viajava para cantar em outras congregações. Começara a cantar na igreja ainda menina e sua voz chamou a atenção. Lembrei de um podcast sobre Nina Simone que escutara algumas semanas antes. Nina também começou assim: cantando gospel aos cinco anos de idade e assombrando os que a ouviam com a potência de sua voz. Não disse nada à Lidiane, em parte para não interrompê-la, em parte porque imaginei, talvez de forma errônea, que não conheceria Nina Simone. Lidiane continuou relatando que na verdade era tímida, mas aos poucos foi trabalhando isto, aprendendo a confiar no Senhor e nos seus caminhos. Pensava em fazer faculdade, mas as pessoas ao seu redor lhe convenceram que seu talento para cantar era um dom de Deus, não podia ser desperdiçado. Com o tempo ela, que não se via cantora, se acostumou e até tomou gosto. Hoje em dia cantava para milhares de pessoas e agora dava o primeiro passo para uma carreira nacional, quem sabe internacional. Pois, apesar de morar na parte boa do seu município, perto da praça, sonhava em ganhar dinheiro e sair dali, mudar-se para um lugar mais central do Rio de Janeiro, como Copacabana, ou até para o exterior...

 

 

Minha filha, que estava na fileira de poltronas do outro lado do estreito corredor, se interessou pela conversa. Lidiane, ao vê-la, elogiou: “Que linda! Tenho um sobrinho que também é branquinho assim, igual ela”. Fiquei um pouco incomodada com o comentário, mas não demonstrei. Apresentei Lidiane à minha filha, que de uns tempos pra cá diz que quando crescer vai ser cantora. O rosto da pequena se iluminou: “Mamãe, vamos no show dela?”. Acho que não... Por mais encantadora que Lidiane seja, shows de gospel em igrejas evangélicas não me interessam. Mas fiquei emocionada com o encontro, há tempos não conversava com uma pessoa espontânea como Lidiane, que parecia destituída de julgamentos ou segundas intenções, legitimamente feliz por compartilhar suas vitórias. Diferente de mim, Lidiane não racionalizava cada pedaço da conversa. Que voe cada vez mais alto. 

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Espero mesmo q Lidiane você, cresça e se realize. Quem sabe ela tenha sorte de se tornar consciente, mas serena diante dos preconceitos...

É bacana esse contraste q sua auto análise trás pra gente. Pra pensar, refletir, considerar e se revisar!
Bjo!!
Zoraya Cesar disse…
Que crônica leve e que nos eleva tb, Alfonsina! Um respiradouro de borboletas e esperanças no meio do caos. E vc fez o melhor: parou de pensar o q quer q estivesse pensando e prestou atençao ao outro com sentimento e não só curiosidade. Sucesso pra Lidiane!
sergio geia disse…
Alfonsina, que prazer ler a sua crônica, talvez pela narrativa que a meu ver, se assemelha muito à crônica-raiz. Esses momentos são para mim como bater uma foto, a crônica é a materialização de seu registro. A narradora, pelo que você deixou transparecer, é propensa a julgamentos ou segundas intenções, sem contar a existência de ideias preconcebidas. Lidiane é espontânea, faceira, leve, assim como toda a criança, assim como a filha da narradora O homem, meio dado no início, se retraiu depois. Honestamente? Que delícia ler você hoje!
Albir disse…
Que beleza, Alfonsina! Seu texto tem a força da verdade, como o discurso honesto e espontâneo da moça. Moça que me deu vontade conhecer.

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