ARMADEIRA >> Zoraya Cesar


Quando o conheci, ele era viúvo, e tinha um filho ainda pequeno, Mickey. Seu nome não era esse, claro, o apelido viera por ter nascido pequeno e feio como um ratinho abandonado. 

E eu me apaixonei pelo ratinho assim que o vi. Acho que isso me fez decidir a casar. Isso e o fato de que eu vivia num apartamento alugado e não estava ficando mais jovem nem mais atraente com o passar dos dias. Não me entendam mal, eu trabalhava duro e me sustentava, mas tem uma hora que cansa você estar por conta própria, sabe? E Yomon era um sujeito tão legal, carinhoso, engraçado, tinha uma oficina mecânica para carros, não era rico, mas ganhava o suficiente para nós. E tinha o Mickey. 

Casamos. 

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Ele morava numa outra cidade e, ainda por cima, longe do centro, num pequeno e modesto, modestíssimo, sítio. Ficou difícil trabalhar fora. Mas eu estava contente com a mudança de rotina. 

Dizem que os apaixonados custam a perceber a realidade. Foi assim comigo. Só percebi algo errado quando senti o bafo quente e pútrido que sai da antessala do inferno quando a porta abre. 

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Yomon me tratava muito bem, não posso me queixar. O único senão era Mickey. Bater no menino, ele não batia. Mas gritava, ameaçava, humilhava tanto, que o bichinho vivia encolhido, os olhos esbugalhados e a cabeça baixa. Yomon não permitia que eu criasse grandes laços com o garoto, para minha grande decepção (e espanto! Pensara que ele queria uma mãe para o filho). Das poucas vezes em que tentei intervir, piorei a situação. Tinha de dar carinho às escondidas. Só me era permitido sair com a criança aos sábados à tarde, enquanto Yomon enchia a cara de Balkan 176, uma vodca com 88% de teor alcoólico, ficando praticamente em coma até o dia seguinte. A bem da verdade, a comunidade em volta me achava uma esposa maravilhosa, por levar de boas essas carraspanas de meu marido, coitado, ainda sofrido pela perda da esposa em acidente tão trágico. 

O casamento ia bem, obrigada, mas aquela situação estava dando nos meus nervos. E havia algo mais. Quando perguntei porque não havia lembranças da falecida pela casa, Yomon foi tão agressivo que me deu medo. (Na verdade, o que me assustou mesmo foi perceber, no fundo de seus olhos e nos cantos de sua boca, um quê de crueldade.) Deixei pra lá, não gosto de brigas, sou tímida. Ademais, o casamento ia bem, não é? Eu tinha casa, comida, roupa lavada, um marido carinhoso. E uma pulga atrás da orelha. 

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Foi num desses almoços de confraternização, nos quais todo mundo bebe, come e fuma demais. A esposa de um amigo de Yomon, a voz pastosa de quem desvinculou o cérebro da boca, comentou que a falecida esposa do meu marido era boa pessoa, mas chata e bipolar, não merecia um homem perfeito daqueles. Ainda bem que, com sua morte, Yomon, de gerente, passara a dono da oficina. A polícia ficou meio suspeitosa, mas acabaram concluindo que o acaso fora culpado pelo súbito superaquecimento e explosão do motor que matou a mulher. 

Bem, eu não era bipolar, ao contrário, era mansa, cordata, conciliadora, medrosa. Não tinha dinheiro ou herança. O que Yomon ganharia com minha morte? Nada. 

Nada, nada, nada, a não ser a porcaria do seguro de vida que fizemos depois de uma noite de amor intenso e romântico. Merda. 

Eu já lhes disse que Yomon era um excelente mecânico, e que trabalhara como perito para uma agência de seguros? E a polícia não têm as melhores condições de trabalho, certo? A vida real não é o NCIS*. 

Naquela noite não consegui dormir. De repente vi tudo com clareza. Eu vivia à superfície da vida dele. Uma boboca com curso técnico incompleto, desprovida de bens ou parentes, carente, sem grandes perspectivas, de temperamento fácil. E que assinara um polpudo seguro de vida. 

Só então me dei conta dos pequenos incidentes domésticos que poderiam ter um final trágico. Como daquela vez que me chamou pra ir correndo na cozinha porque ele havia se cortado. Apavorada, entrei desarvorada, apenas para escorregar e cair violentamente no chão molhado e ensaboado. Só não bati a cabeça por sorte. E o tal corte não era nada demais. 

Yomon era tão sutil em seus ardis, que, se eu contasse, me chamariam de doida varrida pra debaixo do tapete. Quando ele comprou um carro caríssimo que, eu tinha certeza, ele não podia pagar, e me chamou para um passeio de barco, sabendo que tenho medo de água e não sei nadar, percebi que não tinha muito tempo. Precisava fugir dali, antes que ele desconfiasse que eu estava a par de seus planos.   

Iria para uma outra cidade e de lá pediria o divórcio ou a anulação do seguro, sei lá, qualquer coisa. Sairia de mãos vazias, teria dificuldade em me sustentar, mas estaria viva. 

No entanto, eu não podia simplesmente abandonar o Mickey, sempre doentinho e maltratado. Como deixar para trás a criança que abraçava minhas pernas como se fossem a última boia após um naufrágio? Que mal conseguia falar de tanto medo que sentia de um pai que, provavelmente, lhe matara a mãe, e o tratava feito cachorro?

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Nunca chorei tanto e com tanta emoção como no enterro de meu marido. Um homem tão amoroso, bom pai, bom marido, bom chefe, bom, bom, bom. As pessoas não sabiam como me consolar frente a uma morte tão surreal. 

As investigações concluíram a verdade dos fatos: lamentavelmente, numa daquelas famosas tardes de sábado, meu marido foi picado por uma armadeira e, devido à costumeira bebedeira, não teve forças ou consciência para chamar por socorro aos primeiros sintomas. De qualquer forma, não havia ninguém em casa para escutá-lo. Só os fantasmas do passado.

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Conto isso pra vocês sentada à beira da piscina da minha nova casa, vendo meu filho nadar feliz, não mais um mickey, um ratinho assustado e abandonado pela sorte. Ele agora é chamado por seu nome de batismo, Sevgan, o amado, e, caso se interessem, seu super-herói preferido é o Homem Aranha. Duas vezes por ano vamos ao cemitério prestar homenagem à desafortunada mãe dele. 

Vivemos bem, graças ao seguro de vida do falecido Yomon.

Ah, sim, mais uma coisa. Eu nunca disse, mas, quando nova, só não completei o curso de técnico em zootecnia porque não tive dinheiro. E ninguém manejava aranhas venenosas como eu. Ainda bem que a polícia não investigou o meu passado… 

Lembram daquela vez que caí na cozinha que Yomon deixara criminosamente escorregadia? Ainda tonta
da queda, vislumbrei uma armadeira escondida num canto. Coletei-a e esperei. Quando percebi que Yomon estava perto de finalizar seu plano, simplesmente deixei-a sobre o corpo inerte de álcool de meu marido. Meu avô dizia que a vida era um jogo de pôquer, nem sempre ganha quem tem a melhor mão, mas quem sabe jogar. Eu tinha uma carta na manga.

Não fiz pelo dinheiro, fiz por mim e por Sevgan. Trabalho para nos sustentar, o valor que recebi de seguro comprei nossa casa; o resto foi colocado num fundo para a educação de meu filho. 

Minha consciência pesa? Não sei. Não penso nisso. Apenas vivo. Às vezes fico triste, gostaria de ter tido um casamento normal, eu realmente gostara de Yomon. Mas a gente joga com a carta que tem na mão. 


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NCIS* - famosa série de televisão, que gerou inúmeros spin offs, sempre com a mesma premissa: uma equipe de agentes que não consegue enxergar um assassino nem quado o sujeito mata na frente deles, a não ser que os peritos dos laboratórios mais tecnológicos que a NASA consigam descobrir DNAs e outros indícios (químicos, biológicos, elétricos, extraterrestres, qualquer coisa que supra a falta de capacidade investigativa dos agentes). 

Foto da armadeira: 
João P. Burini, CC BY-SA 4.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0>, via Wikimedia Commons

Comentários

Anônimo disse…
E ainda dizem que mulher é "sexo frágil"!Elas sempre arrumam um jeito de resolver situações, digamos complicadas!
branco disse…
muito bom. melhor que muito bom, melhor até que excelente.
segvan , futuramente estudaria medicina e fundaria uma grande laboratório?
again...muito melhor até que excelente.
Érica disse…
O feitiço virou contra o feiticeiro... Boa virada!
Mas, claro, tinha que haver um defunto na história rs
Nadia Coldebella disse…
Tô aqui pensando quem era a Armadeira da sua história, que como sempre está muito boa!
Zô, vc já pensou em escrever um manual: "1000 maneiras não convencionais de eliminar gente odiosa". Vejo muito potencial ��

Bjoka!!
Marcio disse…
Sei lá, mas eu acho que caberia processar a agência de casamentos que aproximou o casal.
Pode ajudar a custear a formação do Segvan.
sergio geia disse…
Havia uma armadeira na vida do casal. Que fatalidade... (mesmo que você não contasse, estava na cara que havia algo). Ponto para as habilidades da narradora. Show de bola, Zô!
Albir disse…
Não bastassem os demônios povoando as noites, agora pequenos e frágeis insetos assassinos infestam a minha vigília. Não vou me surpreender se for atacado pelo abajur.
Zoraya Cesar disse…
Pessoal, mil obrigadas! Respondendo:
Anônimo: mulheres são o sexo frágil, por isso precisam tecer esses ardis hehehehe.
lord white: inclino-me agradecida por demais
Èrica: pois é, nesse caso tinha sim hahaha, sem chance de não haver.
Nádia: não provoca, eu gostei da sua ideia. E vou te chamar pra fazermos juntas...
Márcio: não precisa processar a ag~encia, afinal, tudo deu certo, não? Quer dizer... para alguns.
Sergio: ahhhh, fiquei toda boba aqui
Dom Albir... HAHAHAHAAH, eu vou colecionar esses seus comentários, rio demais!

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